sábado, junho 20, 2009

Sobre o Bocejo


Quando uma tarde me olhei na vidraça, percebi algumas marcas que ontem não estavam lá. Cicatrizes do que não percebia ter e ser. Fazer com que elas sumam é matéria ingrata, pois teria de me desfazer de todo o resto que me compõe, corpo e alma. Dicotomia. Armistício. Silêncio e voz. Sapatilhas e andrajos. Algo mais. Sei lá o que e mais um pouco.

Bocejei de madrugada e o som reverberou pelo resto do dia. Enquanto bocejava, percebi os dentes semicerrados tapados pela boca. Bocejava de mim, por não ter vivido em vários corpos e almas, e também bocejo de surpresa, de antemão pelo inesperado. Bocejo também de revolta pelo que não presenciei.

Adélia Prado esteve em Cubatão há alguns dias e soube do ocorrido horas depois. Quando surpreendido com o fato, restou-me apenas o bocejo como resposta. Obviamente o ideal seria que eu quebrasse os bibelôs da sala ou culpasse o neoliberalismo pelo meu lapso. Ou, na pior das hipóteses, entrar em um ônibus e oferecer a promoção: Senhores passageiros, tenho mulher e cinco filhos para criar, por favor ajudem-me comprando os chocolates Frederico. Na compra de três chocolates, enviarei por e-mail, como brinde, um quinto de uma bala Juquinha Moura Leão. Mas fiz beicinho e me autovilipendiei de forma ostentiva e costumeira. Eu ainda hei de tirar um daguerreótipo com Adélia. Nem que eu faça muxoxo e ameace, desde aquele instante, tornar-me leitor de Augusto Cury. Sinto que Adélia encheria seus olhos de lágrima e compadecimento de minha pobre alma e, sob súplicas, rogar-me-ia que parasse com tais sandices.

Pus-me então em posição de lótus, fechei os olhos a bocejar freneticamente, me imaginando no reino das delícias comestíveis e espirituais. Bocejo por você, por eu e principalmente por todos nós, cativos e sedentos. Principalmente os imbecis idealistas e que almejam ser melhores em alguma coisa, apesar de todas as dores passadas e presentes, mesmo que as estomacais.

Meu vizinho de banco coçou a cabeça e suspirou. Eu também suspirei, aproveitando o ensejo. E de quebra coloquei a mãozinha no queixo. Em nada pensei. Só me sobrou a revolta interior pelo não acontecido, pelo silêncio do dia e pelo ronco do motor do carro que passa na rua de trás. Viver tem sido tão enfadonho. Não tenho tido grandes emoções nem grandes depressões, ultimamente ando tão equilibrado que mal tenho tido porres homéricos com direitos a sabedoria de rodoviária. Falta-me tempo para as baboseiras comesinhas do cotidiano. Tom Zé me despreza, Vanderléia me saúda e as coristas do Roberto Carlos dançam ao som do Tchuba-Ruba da Mallu Magalhães. Ai meu Jesusinho, quanta cretinice. Me ser é tão sem-graça que arrancar duas linhas sobre meu eu é tarefa inglória.

Canalhices à parte, bocejo. E a imbecilidade de hoje encerro.



Um comentário:

Rodrigo Prol disse...

Realmente vc está inspirado...E de boa, vc não é sem graça pois possui um tino literário mto bom, como te disse antes...E o q me provoca bocejo é a literatura pastel e insossa de hj em dia...No seu caso, me arranca aplausos, algo não mto comum pelo q enxergo por aí...

Abraços, Ed !!! =)