quinta-feira, setembro 28, 2006

E agora, José?


José, João, Quinzinho, Amadeu, Madalena, Helena e tantos outros vêem diariamente seus sonhos interrompidos por uma realidade muito mais forte do que ideologias ou simples devaneios de uma noite de verão. Como eu era feliz no tempo em que nem imaginava no que ou em quem me transformaria futuramente, aliás, no que me transformei que nem sei explicar? Sou alguém, venci, perdi, me transformei, ou continuo o mesmo de cinco anos atrás? Como posso ou poderiam me definir? Sei que muitos me vêem como um vagabundo, acomodado, um folgado que não corre atrás de nada e espera que as coisas caiam do céu, e confesso que não tenho feito muito para mostrar-lhes o inverso. Também não sinto orgulho da minha condição, especialmente do meu fracasso, e mesmo do que poderia dizer acerca de eu mesmo, se fosse questionado hoje, neste momento. Imagino todos me apontando com o dedo e me lançando questionamentos que eu realmente não sei responder. Não sei sanar as dúvidas que me vêm à cabeça, quanto menos responder aos demais.
Aliás, alguma coisa eu poderia responder, por mais que eles não entendam o que quero expressar. Durante anos eu alimentei e criei um monstro que me aprisionou, sendo que ele me dominou e não consigo mais me livrar. Esse monstro se autodenomina sonho. Sabe o homem do saco, aquele que levava as crianças que não queriam comer na hora das refeições? Pois é, esse mesmo monstro ou homem me levou a uma dimensão surreal, fora desse mundo visível, e lá me criou, me alimentou da forma mais materna possível, me inculcou ideais que por fim foram a razão da minha existência. Mas abruptamente esse mesmo ser me lançou de novo à esfera terrestre, sem ao menos me deixar seu telefone, endereço ou algo com o qual poderíamos manter contato, nem mesmo o e-mail o canalha teve a pachorra de me escrever.
Aquele era meu mundo, e todas as noites ele me contava histórias de uma existência racional, em que todos os meus devaneios de adolescência se tornariam realidade. Por fim, eu vivi anos a fio com essa doce ilusão de que seria simples, fácil e cristalino como água, eu iria alcançar meus objetivos e finalmente viver uma existência mais real e de acordo com meus sonhos de adolescência.
Mas nada disso aconteceu, e hoje eu me vejo literalmente em um mato sem cachorro, como diz aquela popular expressão. Tenho duas saídas: traio a minha essência e passo a viver em desacordo com as minhas convicções, passando a viver uma identidade falsa e tentando me deslocar do passado ou simplesmente jogo tudo para o alto e tento dar o único fim possível ao meu caso?

sábado, setembro 16, 2006

Leila Diniz


" Você pode muito bem amar uma pessoa e ir para cama com outra. Já aconteceu comigo".
Proferindo essa sentença nos dias atuais, essa frase até que soa banal, mas isso foi dito em 69, ano em que a moral e os bons costumes ainda eram vigentes. Uma mulher que falava coisas dessa estirpe não poderia ser considerada bom exemplo para a socieade. Mas Leila Diniz não queria se preocupar em ser modelo para alguém, ela apenas era e fazia o que achava conveniente sem se preocupar com as convenções sociais. Ela podia romper tabus, ela era Leila Diniz.
Leila nasceu no Rio de Janeiro, em março de 45, e se formou professora primária, sendo então lembrada por ser uma das primeiras moças que se preocupava com a integração dos alunos, sejam elas de quaisquer raça, credo, sexo ou mesmo se fossem deficientes de quaisquer espécie. Ela não aceitava a segregação que era imposta até então, em que os alunos considerados "diferentes" não poderiam conviver com as crianças ditas normais, e algumas vezes brigou com mães de alunos que eram favoráveis a essa prática. Por esses e outros motivos ela se desligou da profissão, e, aos 17 anos, já estava casada com o famoso cineasta Domingos de Oliveira, que lançou recentemente o filme Feminices. Vale lembrar que esta é uma obra realizada com parcos recursos, e mesmo assim diz a crítica que esse é um bom filme, que busca retratar a mulher sob sua própria ótica.
Em 65 ela se separa de Domingos e desde então começa sua carreira no teatro, cinema e televisão. Fez muitas novelas na então nascente Globo, e também na extinta Tupi e Excelsior. Fez tanto papéis de grande expressão, como coadjuvantes e participações especiais. Em 66 filma Todas as Mulheres do Mundo, sendo dirigida já pelo seu ex-marido, e que foi uma das grandes obras-primas da década, servindo como retrato histórico por causa da documentação da Zona Sul carioca de então, já então às voltas com os intelectuais e a agitação predominante nesse bairro da cidade.
Um dos seus grandes sucessos foi a novela Anastácia, da novelista Glória Magadan. Em 67, a teledramaturgia moderna ainda não existia, sendo assim as telenovelas ainda se passavam na Idade Média e seu enredo era melodramático. Mas Leila não era uma mulher preconceituosa. Ela dizia que não importava se era Shakespeare, ou Glória Magadan, o importante era que ela trabalhasse.
E assim o tempo vai correndo, Leila sempre polemizando, sendo uma mulher à frente do seu tempo, sem muitas preocupações com o que diziam sobre seu comportamento de mulher libertina. Ela é um dos grandes ícones dos anos 60 e 70, pela sua atitude ousada e inovadora, e também por ser uma das precursoras do Feminismo, em uma época em que, apesar das transformações sociais, o papel da mulher continuava sendo a de subalterna perante o homem. Eram tempos ainda muito complicados, a mulher ainda entrava no mercado de trabalho e o casamento ainda era almejado pelas moças de boa família, que viam nisso o seu grande propósito.
Eu particularmente só a vi em filmes uma vez (apesar de ser famosa, as obras das quais participou são pouco divulgadas). Foi no filme Edu Coração de Ouro, de 67, em que ela fazia o papel de uma estudante normalista vendedora de catálogo de perfumes, e conhece a personagem de Paulo José no ônibus. Bom, nem é necessário dizer que os dois acabaram indo para a cama, nessa época até os beijos eram muito contidos no cinema, quanto menos uma cena de sexo de uma mulher solteira.
Em 69 concede a famosa entrevista ao então jornal alternativo O Pasquim, proferindo seus pensamentos sobre a vida e principalmente sobre o sexo. Seus palavrões foram substituídos por asteriscos, e a matéria saiu com muitos desses símbolos, pois, em cada frase, ao menos um palavrão ela falava. Ali saíram muitas dos seus famosos ditos que mostravam a forma de pensar e agir de uma mulher avançada. Essa entrevista deu origem à lei que cerceava ainda mais os direitos da imprensa; ela não teve seu contrato renovado pela Rede Globo por motivos "morais" e foi perseguida pela ditadura, tendo de se esconder durante um tempo. Ao voltar, se tornou jurada de Flávio Cavalcante.
Em 71, ela se casa com o cineasta moçambicano Ruy Guerra e pouco tempo depois engravida de sua única filha, Janaína. É famosa a sua foto na praia de biquíni e grávida. Isso era ousado, pois uma mulher na sua condição em condições normais não exporia sua barriga em público. Mas estamos falando de Leila Diniz...
Infelizmente Leila morreu cedo. No ano seguinte, aos 27 anos, ao voltar do Festival de Cinema de Nova Délhi, na Índia, o avião em que estava explodiu no ar. Mas o legado que ela nos deixa de ousar sempre permanece em nós, e inconscientemente nos servimos dele em muitos momentos, principalmente quando questionamos e principalmente divergimos da moral imposta. Salve Leila!

sábado, setembro 09, 2006

Pagu


“Pagú tem uns olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-coco quando passa.
Coração pega a bater.

Eh Pagú eh!
Dói porque é bom de fazer doer (...)”
(Raul Bopp)
São Paulo, 1927. Praça em frente à Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Lá vem uma moça com os lábios pintados de roxo, cabelos desgrenhados, roupas extravagantes para a época e fumando. Ela ouve insultos dos estudantes da faculdade, e responde à altura. Ela quebra as convenções sociais, e não se importa, ela quer mesmo é chocar. Eis Pagu.
Patrícia Rehder Galvão nasce em São João da Boa Vista em 1910, e aos três anos se muda para a Paulicéia desvairada, onde cresce em uma cidade efervescente, em pleno desenvolvimento por causa da imigração em massa, da industrialização crescente e do café que brotava no interior do estado. Com quinze anos, passa a escreve no jornal Brás, usando o codinome de Patsy, e, aos 18 anos, se junta aos modernistas, ficando muito amiga do famoso casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, os "Tarsiwald". No ano seguinte passa a colaborar na Revista de Antropofagia, já estando então inserida no meio intelectual da São Paulo ainda provinciana, apesar do rebuliço causado pela Semana de Arte Moderna de 22, que veio a revolucionar a arte que se fazia até então. O Modernismo propunha uma "deglutição" dos valores culturais predominantemente estrangeiros até então em voga, para a criação de uma cultura genuinamente brasileira.
No ano seguinte engravida de Oswald, e, para manter as aparências, se casa com o pintor Waldemar Belisário, mas eles nunca tiveram vida conjugal. Em 5 de janeiro de 1930, ela se casa com Oswald em uma cerimônia realizada no jazigo da família dele, e em setembro nasce Rudá. Mudam-se para a Ilha das Palmas, em razão dos grandes problemas financeiros de Oswald por conta do crack da Bolsa de Nova Iorque. Pagu viaja à Argentina, conhece Luis Carlos Prestes, e fica encantada com os ideais socialistas. O casal então se filia ao Partido Comunista, e fundam o jornal O Homem do Povo, onde Pagu criticava de forma ferrenha a alta sociedade paulistana de então, às voltas com sua opulência, em detrimento dos imensos cortiços operários que se formavam nos bairros fabris da capital.
No ano seguinte, ao participar de um comício realizado no porto de Santos em favor dos operários da construção civil, Pagu é presa e fica detida na cadeia que se localiza na Praça dos Andradas, sendo que hoje este mesmo local é um centro cultural que leva seu nome. Ela foi a primeira presa política do Brasil.
Ao ser solta, em 32, ela se separa de Oswald e vai morar no Rio de Janeiro, onde se emprega em trabalhos "populares" como uma forma de conhecer as necessidades do povo e poder dialogar de forma mais convincente com eles. No ano seguinte, usando o nome de Mara Lobo, lança o romance Parque Industrial, onde conta a realidade do proletariado das grandes cidades, sua miséria, a falta de perspectiva e principalmente a condição da mulher naquela degradação social. Ela então sai pelo mundo para conhecer melhor como era a realidade comunista, e durante a viagem se torna correspondente internacional de alguns jornais. Vai aos Estados Unidos, Japão, China e à então União Soviética, onde fica horrorizada com a realidade totalmente paradoxal da que esperava encontrar no berço do socialismo. Suas palavras: “o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um hotel de luxo para os altos burocratas, os turistas do comunismo, para os estrangeiros ricos. Na rua as crianças mortas de fome: era o regime comunista”. Nem mesmo essa forma de regime escapava à praga das grandes elites concentradoras de renda e exploradoras do povo...
Ao voltar ao país em 35, é presa novamente em São Paulo, e sofre as piores torturas na cadeia, sendo condenada a dois anos de reclusão. Pagu foge antes do término da pena, mas é novamente presa e cumpre mais dois anos e meio no Rio de Janeiro. É solta muito debilitada, devido às muitas agressões físicas que sofre lá dentro. Ela nunca se recuperou desse período passado em cárcere.
Em 41, ela se casa com o jornalista Geraldo Ferraz, tem um filho batizado com o mesmo nome do marido. Ela então rompe com o PC e passa a ser crítica literária, trabalhando nos jornais A Manhã, O Jornal,A Noite e Diário de São Paulo.
Nos anos 50 Pagu descobre o teatro e passa a frequentar a Escola de Arte Dramática (EAD), em São Paulo, sendo uma boa aluna e inclusive escrevendo peças de vanguarda, como aliás era bem típico de sua personalidade chocar sempre, e alguns textos foram representados no final daquela década. Também colabora no jornal A Tribuna de Santos.
Em 62 descobre-se gravemente doente de câncer. Ela vai se operar em Paris, sem grande sucesso. Ela então doa toda a sua biblioteca à EAD e falece em 12 de dezembro desse mesmo ano, aos 52 anos. Infelizmente alguns exemplares de sua biblioteca foram roubados nesses 44 anos desde sua morte.
Pagu se foi, as luzes se apagaram sobre uma das maiores mulheres de nosso tempo, que ousou e lutou durante sua vida em busca de um ideal, mas o que importa mesmo é que sua semente foi plantada, e resta a nós continuar a busca pela valorização da cultura nesse país.