segunda-feira, janeiro 29, 2007

E chega ao fim mais um Repórter Esso


-Passsssssseeeeeeeeeeeiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Essa foi a reação do rapaz após ler seu nome constando na lista de aprovados de um concurso público qualquer de sua cidade. Após ter se dedicado com afinco aos estudos, abdicado de finais de semana e feriados, ter até se matriculado em uma empresa especializada em preparação de candidatos para provas de concursos públicos e deixado a noiva para segundo plano por vários meses, finalmente veria seu esforço recompensado. Poderia finalmente começar a pensar no aluguel da casa, no enxoval para o casamento e todos os demais quesitos de sua vida que haviam sido postos para escanteio nesse período de preparação para essa prova tão importante em sua vida profissional. A sua noiva, uma moça chamada Fátima, comerciária de uma loja de tecidos e conhecida pelos seus longos suspiros durante o expediente, já se encontrava agoniada com o fututo nebuloso do seu futuro marido. Mas a partir de agora a vida já sorria para esses jovens pombinhos. Só não se sabia quando o rapaz seria convocado para tomar posse em sua nova função, mas isso pouco importava. Esse moço realizava o grande sonho de considerável parte da população brasileira: ingressar no funcionalismo público, atraído pelos rendimentos razoáveis e estabilidade no trabalho.
Após ter se recomposto e corado pela sua indiscrição pública, saiu andando sem olhar para trás nem para os lados, com um sorriso de felicidade incontida. Iria aproveitar o horário de almoço para relatar a novidade à sua noiva. Obviamente a moça entrou em polvorosa, felicíssima por uma reviravolta naquele noivado de pequenas emoções e grandes frustrações. Com a família do rapaz não esperemos igual entusiasmo com a chegada da notícia. Seus pais estavam mais entretidos com outras questões que excluíam o filho agora funcionário público. A televisão estava sintonizada em um canal que naquela mesma hora noticiava à população sobre os problemas enfrentados pelo País devido à gastança desordenada devido à folha de pagamento dos seus servidores tanto federais quanto estaduais, cujo dinheiro fazia muita falta na educação, saúde, habitação e infra-estrutura. Mas o mais novo funcionário público não se importa com isso. Ele espera ansioso pela sua convocação.
Resolveu tomar um cafezinho na padaria da rua de trás, quando se encontra com o amigo de infância e resolve disputar uma partida de sinuca, como pretexto para colocar a conversa em dia. O movimento no estabelecimento havia aumentado a tal ponto que o proprietário deste cogitava a possibilidade de contratar alguma moça ou rapaz das redondezas para auxiliá-lo. Mas ao mesmo tempo lhe vinham à cabeça os impostos e taxas a qual estavam obrigadas as pessoas físicas junto ao governo, sem que isso implicasse em retorno por parte deste último. Se não fosse isso, provavelmente já teria recrutado esse novo funcionário ou mesmo dado início a uma boa reforma na padaria, que já há alguns anos pedia por uma nova mão de tinta e azulejos não tão encardidos. Isso sem contar quando foi necessária alguma visita à Receita Federal cuidar de documentos relacionados ao seu comércio. Muita dor de cabeça e pouco respeito por parte dos funcionários pagos, em parte, pelo dinheiro no caixa da padaria da rua de trás. Mas o mais novo funcionário público não se importa com isso. Ele espera ansioso pela sua convocação.
O pai desse rapaz (não importa muito o nome dele: tanto poderia ser Fernando, como Bruno, ou Tiago, seria simplesmente mais uma certidão de nascimento em uma cidade espalhada por esse páis de dimensões continentais) tenta há anos requerer a sua aposentadoria por tempo de serviço, após contribuir por 35 anos ininterruptos em uma das maiores indústrias do município. E também não importa muito se essa fábrica se localiza no Norte do Paraná ou na Zona Franca de Manaus. A globalização iguala culturas, diminui distâncias e uniformiza pessoas ou situações. Mas ele não consegue, devido a vários problemas, dentre eles uma parte dos recursos destinados à Previdência sugados pelo excesso de servidores públicos. A burocracia e as exigências são tamanhas que esse senhor passa a achar a cada dia que o Brasil não respeita seus aposentados e que muito menos deseja que os que desejam gozar do descanso merecido venham a obter o seu direito devido, nem que seja com esse salário miserável que o Estado paga a boa parte dos seus aposentados. Mas o mais novo funcionário público não se importa com isso. Ele espera ansioso pela sua convocação.
O rapaz acaba de passar por uma banca de revistas na qual um dos jornais expostos tem um título na segunda página que tem por título: Brasil cresce apenas 3% no ano passado, bem menos que países emergentes como Índia e China. Como o rapaz não lerá esse jornal, não chegará ao seu conhecimento de que o Brasil carece de empreendedorismo, a população não ousa ser patrão porque o país com a maior carga tributária do país não incentiva o desenvolvimento interno e ainda por cima sustenta nas costas uma folha de pagamento crescente em vista da onda de concursos públicos que crescem diariamente. Desse jeito não há país que aguente. Mas o mais novo funcionário público não se importa com isso. Ele espera ansioso pela sua convocação.
Anoitece e esse rapaz volta para casa, janta, assiste televisão e vai dormir. Hoje é dia 13 de dezembro de 1968. Ele não sabe, mas nesse dia foi instituído o Ato Institucional nº 5. Para ele, isso pouco importa, mas o Brasil entra em um dos períodos mais negros de sua história. Mas isso é papo para outro dia.

sábado, janeiro 20, 2007

Clarice Lispector


"...estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda."
"Faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém."
"A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho."
"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar."
"Silêncio. Preciso morrer. Já morri algumas vezes, há tempos que não. Às vezes é preciso, é preciso morrer para viver. Ando com saudade de Deus."
"Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive às vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu a angústia que insatisfeita foi a criadora da minha própria vida."
"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui."
"Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente - como em dores de parto - e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim."
"Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante."
Essas são frases extraídos das mais diversas obras de Clarice Lispector, a nossa escritora mais compromissada com o psicológico dos seus personagens. Não dá para permanecer incólume aos seus livros, continuar a ser o mesmo depois dessa experiência mágica de uma mulher que conseguiu atingir um patamar não alcançável por nós, pobres mortais, pela angustiante busca de nós mesmos, de quem realmente somos e de que função ocupamos. Creio firmemente que quem a leu e não modificou em nada sua vida simplesmente não entendeu sua obra ou não teve capacidade de absorver suas mensagens muitas vezes cifradas.
Clarice não era aquela escritora convencional, onde suas histórias tinham sempre um predeterminado começo, meio e fim. Muitas de suas personagens não possuíam nome tinham muito menos enredo. Eles apenas divagavam, e desses pensamentos surgiram fragmentos maravilhosos, dos mais ricos de nossa literatura e no meu caso capaz de me provocar as lágrimas. Não consigo exprimir o que sinto ao lê-la, apesar de ainda ser um iniciante em suas obras. Ali não são somente palavras aleatórias que combinadas formam frases. São gotas de sangue misturadas ao papel, que pode conter ainda resquícios viscerais, produto da mais imensa dor da busca que não consegue se desvencilhar de nós mesmos quando a desprezamos.
Eu digo ás vezes que acredito na arte transformadora, que choca, te sacode, faz refletir. Gosto de um livro, um filme, uma peça, uma tela ou qualquer outra manifestação artística que modifique em algo a minha vida, não me deixe sair do lugar da mesma maneira que entrei. E isso Clarice faz com maestria e propriedade, porque ela sabia que seu legado iria permanecer nas futuras gerações.
Clarice é um tapa na cara, a dor do bisturi que corta sem anestesia, mas que depois disso te consola, alivia como o colo da mãe quando éramos crianças. Me refiro a aliviar no sentido de que ela conseguiu exprimir o meu grito naquelas palavras. O grito contido que nunca foi dado por medo, pudor, ou mesmo motivos desconhecidos. Em Clarice não há certezas absolutas. Só há questionamentos, o vazio, a escuridão, a sensibilidade. Ela te acaricia e nos mostra que há beleza também na melancolia, que escrever é realmente difícil, as lágrimas e as gotas de sangue podem ser vertidas, mas que só a palavra salva e ela deve ser dita, a todo custo, mesmo que o preço a ser pago por ela seja grande.
Todos somos um pouco Macabéa, uma de suas personagens mais conhecidas, a moça alagoana que vem tentar a sorte no Rio de Janeiro ganhando menos de um salário mínino e vivendo em uma pensão fétida no centro da cidade. A moça que vivia pouco para não chegar ao final com saldo negativo e tinha aquele olhar e curiosidade estranho das pessoas que não sabem a que vieram, nem ao menos se realmente tem noção de que estão nesse mundo.
Digo isso porque eu sei tudo que tiver de experenciar pra poder hoje escrever esse texto, mesmo que mal e porcamente. Pois somente a palavra me faz estar aqui hoje. Precisei me abster do que sou para conseguir escrever as palavras certas. Antes dela, eu não imaginava que um escritor pudesse exprimir tão bem o obscuro da alma que a crueza do dia-a-dia não deixa aflorar, e muitos vivem se se dar conta disso. Eu não consegui passar incólume por Clarice. Acredito que ninguém consiga. As cicatrizes que ela vai deixando em mim surgem indefinidamente, sem que eu saiba ao menos como foram adquiridas. Só sei que elas fazem parte de mim mesmo que eu não as peça para existirem: elas apenas são.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Senhor, vamos estar encaminhando sua solicitação para o setor de diagnósticos


Bom, estou há 8 dias sem colocar um cigarro na boca, e espero parar de uma vez com meu companheiro de longas madrugadas que era meu amigo branco e magro. Não prometo que nunca mais colocarei um cigarro na boca, muito menos que me tornarei um anti-tabagista ferrenho e que a partir de agora irei empunhar a bandeira contra o cigarro em todos os locais em que for. Curioso como esse pequeno objeto foi visto de forma diversa no decorrer da história. Até vinte anos atrás, aproximadamente, o cigarro ainda era visto de forma normal e não se era penitenciado por acender um em local público e perto de não-fumantes, por mais que estes não gostassem da fumaça e do cheiro. O mercado de trabalho ainda não os recriminava e a pessoa não deixava de ser um bom profissional se contivesse dentro da sua pasta um maço de Carlton e soltasse uma longa baforada durante o expediente.
Atualmente a coisa mudou de figura. Impressionante como a pós-modernidade, com seu culto exacerbado do corpo e bons exemplos dentro das corporações mudaram a forma como o cigarro passou a ser visto. Eu mesmo já deixei de ser arrumar trabalho por responder afirmativamente quando indagado sobre tendências ao uso do tabaco. Claro que na hora pensei em omitir esse mau hábito, mas o tipo da coisa que mais me desagrada é mentir sabendo que vou me contradizer na hora mais inesperada. E o cigarro não dá pra esconder, o hálito e o cheiro são sentidos por alguns metros de distância.
As indústrias de cigarro até mesmo patrocinavam campeonatos esportivos, provavelmente todos se lembram da logomarca do Marlboro na Fórmula 1. Propagandas do produto eram expostas nas revistas de grande circulação. As novelas não se rogavam em mostrar invariavelmente alguns de seus personagens com cigarros entre seus dedos, sem que isso denotasse falta de caráter. As fotos de Coco Chanel com seu inseparável cigarro ou das grandes atrizes de Hollywood nos anos 40 e 50 fumando eram símbolos de uma era. Um dos ícones do movimento feminista a partir dos anos 60 era ele mesmo. Com ele a mulher provava que era igual ao homem. As mulheres passaram então a tragar seu cigarro tranquilamente pelas ruas sem medo de represálias, sem olhares de desaprovação das senhoras detentoras da moral e dos bons costumes.
Hoje o fumante é execrado, mal-visto e é alvo de preconceitos da parcela da população que não atura seu vício que custa aos cofres do governo alguns milhões de reais em tratamento às doenças provocadas pelo tabagismo ou mesmo pelos programas de combate a ele. Os valores morais dos brasileiros mudaram muito ultimamente. Esqueceu-se que o cigarro, da mesma forma que realmente provoca tantos males à sociedade e especialmente aos que aspiram a sua fumaça, é também uma mera vítima de uma época que glamourizou o vício.
Fumar realmente é uma fonte de prazer, quem fuma ou já fumou sabe como relaxa acender um cigarro pra escapar daquela situação frustrante. Somente quem vivenciou essa experiência sabe como incorporamos esse hábito ao nosso cotidiano, e como é complicado desvencilhar-se dele de forma tão abrupta. E a tendência de restrição ao fumo é mundial. Nos Estados Unidos, principalmente em Nova York, é sempre necessário pedir permissão para acender um cigarro e estar preparado para ouvir um não do tamanho das saudosas Torres Gêmeas. Grande parte dos países da Europa aumentou substancialmente os impostos sobre o produto, visando diminuir seu consumo. Mas ainda existem povos que têm no tabagismo marca registrada, sendo que os gregos e chineses são conhecidos mundialmente por serem "chaminés ambulantes".
De qualquer forma, sou favorável ao livre arbítrio. Nesses poucos dias, percebi que as minhas roupas pararam de feder e as minhas mãos nunca mais ficaram impregnadas por aquele cheiro horrível. Eu nunca mais acendi um cigarro quando fiquei ansioso ou preocupado. Andei engordando um pouco, pois a grande maioria das pessoas que largam o vício percebe que a balança da farmácia se torna tão ou mais inimiga do que o carnê do IPVA. Ando irritadiço, fico andando de um lado para outro, tento me desabituar à existência do cigarro no meu dia a dia.
É o preço a se pagar pelo vício que adquiri nos meus 18 anos, quando, ainda garoto e sem vivência de vida, passei por uma fase complexa em que queria experimentar tudo que me havia sido negado até então por uma criação castradora e que me negava as descobertas adolescentes. Se realmente essa tentativa surtir em êxito, precisarei achar um novo amigo que tantas e tantas vezes me acompanhou no ponto do ônibus. Pois os cigarros fumados esperando a condução foram sempre os melhores. Mas os coitados tinham vida curta e mal tinham a glória de serem saboreados. Em grande parte das vezes, ao acendê-lo, o meu ônibus passava pelo ponto.
Aquele cigarro aceso na calçada é emblemático. É a existência se esvaindo naquele espaço de tempo da luta entre o fogo e o esquecimento desse simples objeto. As cinzas se acumulam, o fogo teima em continuar a queimar, o cigarro vai terminando. Pois é, enquanto há cigarro, há vida. Alguém passou apressado e pisou em cima dos restos de vida. Acabou-se o que era amargo.

domingo, janeiro 07, 2007

Espelho opaco


Ontem reencontrei um quase xará (Ed Carlos). Pois é, existem outras pessoas com nome semelhante ao meu, espalhados por esse país de dimensões continentais chamada Brasil. Provavelmente existirá algum outro Edcarlos na Libéria ou mesmo no Nepal? Não se sabe. E ainda são permitidas variações: Edcarlos, Ed Carlos, Edicarlos, Edi Carlos. O cardápio é variado. O naturalista não deixa de fazer seu pedido por não achar um prato que não esteja a seu gosto. Sempre tive de repetir meu nome no telefone, corrigir alguém que porventura venha a escrever o meu nome, nunca tive outro colega na escola com o nome igual ao meu, nunca tive de perguntar qual Edcarlos procuravam ao ouvir meu nome sendo pronunciado e na lista do concurso tinha a vida enormemente facilitada ao não ter muitos xarás com quem dividir o cargo preterido. Também posso mudar de nome, de acordo com o ouvido do transmissor da mensagem: já me chamei Edgar, Eduardo ou mesmo Ricardo. Ou seja, momentaneamente alguma pessoa teve a ousadia de mudar a minha história de vida. Ou você acha que se eu não me chamasse Edcarlos a minha vida teria sido a mesma coisa? Bom, a grande maioria das pessoas me chama de Ed, e quando alguém me chama pelo nome completo instantaneamente me sinto como uma criança que é surpreendida puxando o rabo do gato ou enfiando o dedo na panela onde tem água esquentando. Me sinto ofendido ao ver meu nome pronunciado em alto e bom som: E-D-C-A-R-L-O-S. Não existe palavrão maior, esse nome deveria ser proibido assim como as palavras de baixo calão e partes íntimas mostradas despudoradamente na novela das oito.
Bom, não possuo tantas semelhanças físicas nem psicológicas com esse meu xará, se bem que existe um ponto que nos une; ou melhor, une a todos nós: a essência da inconformidade, por mais que ela esteja adormecida em alguns. Vi nele um brilho estranho no olhar que eu não havia visto há três anos atrás, na primeira vez que o vi. Diria que são olhos de ressaca, de inconformidade, de tristeza, e sobretudo, de desesperança pela reviravolta a qual tem passado com frustrações contínuas pela vida. Mas ele não é o tipo da pessoa que expressa verbalmente as suas necessidades, medos e pudores. Mas o olhar é o espelho da alma, já diriam alguns. Não ser explicar o que constatei, apenas sentir e perceber que por trás daquilo existia um grande vazio que buscava ser preenchido pelas atividades religiosas praticadas com afinco, como se Deus fosse a justificativa para todos os perrengues.
Já eu nego todas as formas divinas pré-concebidas pelos homens e não creio que tenhamos evoluído tanto assim a ponto de dar respostas a questões tão complexas quanto a nossa espiritualidade. Assuntos como reencarnação, céu e inferno, morte, pecado, punição, dogmas, sexo pré-marital podem dar margem a vários questionamentos que são levados em conta de acordo com a vivência espiritual de cada um, e não posso afirmar que X seja a expressão de pensamento correta, em detrimento de Y. Até porque no início da humanidade as civilizações foram politeístas, não possuíam explicações científicas o suficiente para expressar Deus, sendo assim a divindade poderia ser qualquer coisa palpável ou que provocasse medo ou admiração. Não podemos dizer que eles estavam equivocados, sendo que as crenças religiosas naquela época nada mais foi do que a expressão do tempo em que se vivia. Não é à toa que vivemos a proliferação da religião evangélica nos grotões do país. Em uma época em que o Estado se ausenta de fornecer as premissas básicas de infra-estrutura, só resta à população o milagre divino na busca de um paraíso terreno.
Enfim, ao olhar para o meu xará e seu estado atual, não tive como não deixar no ar mais perguntas, algumas respostas até, e o olhar perdido a procurar: que força é essa que é capaz de nos levar e nos tirar da letargia, de nos mostrar o céu e o inferno em pouco tempo? Em quem ou no que nos agarramos nas horas em que nos vemos sozinhos, nus no meio da multidão, com pontos de interrogação que substituem pessoas, prédios e postes? Ali eu vi um grande espelho, fosco até, porque ele não mostrava a minha fisionomia nem a dele, mas sim algo além. Eu percebi que somos muito diferentes. Jõões, Marias, Josés, Marcos, Antônias, enfim, você e eu, o vizinho, o mendigo, a vendedora, a dona-de-casa, todos nós. Uma hora a máscara que seguramos sem perceber vai teimar em cair ao chão, e nessa hora seremos sacudidos e estapeados abruptamente, porque chegou a hora de enfrentar a verdade. Não sabemos quem somos, nem se somos algo. Mas a dúvida surgirá em algum momento. E aí é que a porca torce o rabo.