sábado, outubro 21, 2006

Ah, o amor...

-Amor, corta aqui esse tomate pra mim porque senão essa janta não vai sair! - gritou Lilian da cozinha.
Marcelo ouviu, mas não respondeu devido aos seus devaneios, enquanto observava com seus olhos vivos a mobília da sala.
Era um casal jovem ainda, com menos de cinco anos de relacionamento. Dois anos de namoro, sem o tradicional noivado nem relação formal, com papel assinado. Eles apenas decidiram um dia que queriam viver juntos, e assim foi. A relação já durava aproximadamente três anos.
Ele estava às voltas com pensamentos confusos, em que mesclava sua adolescência com o trabalho exaustivo do escritório, que consumia praticamente todo o dia e ainda fazia com que acabasse trazendo as preocupações profissionais para o recesso do lar. Apesar de tudo, se considerava um felizardo. Gostava da mulher, tinha a sua casa, um trabalho com rendimentos razoáveis, um simpático cachorro beagle de singelo nome, Asdrúbal, mas lhe faltava um filho. Estava entre os planos do casal uma criança assim que a situação econômica se aprumasse.
Ambos eram muito diferentes, tinham visões sobre aspectos da vida muito diversas, o que fazia com que muitas vezes suas opiniões se chocassem, a ponto de haver sérias brigas. Não se pode negar que ambos fizeram muitas concessões para viver esse amor. Lilian havia desistido de seus sonhos de morar no exterior, trabalhar em outros países com design e principalmente estudar sobre o tema, poder juntar uma quantia considerável e voltar ao Brasil para montar sua esperada empresada especializada em móveis contemporâneos. Já Marcelo era um grande notívago, adorava sair com seus amigos pela noite e sua fama de "pegador" era não só comentada como afirmada pelos seus amigos de juventude. Com o casamentos, ambos deixaram de lado algumas particularidades suas para o bom convívio do casal.
Aparentemente nem tudo estava às mil maravilhas. A relação havia caído na rotina, ela adorava discutir a relação, enquanto Marcelo não se importava com isso e achava chatérrimo discutir coisas tão abstratas quanto falar de ciúmes. Não havia mais o cinema de final de semana, jantares com os amigos, festas com o pessoal da faculdade, noitadas no motel, compras a dois no supermercado, relações sexuais diárias, muito menos aquele costumeiro "Eu te amo" ao acordar e antes de dormir.
Mas nenhum dos dois tinha a coragem de assumir que a relação estava degringolando, que se nada fosse feito ela fatalmente terminaria dentro de algum tempo. E assim os dias e meses foram passados, os casal se evitando, praticamente não havia mais diálogo, se reduzindo a simples estranhos convivendo sob o mesmo teto.
Até que um dia, Lilian tomou sua atitude: estava em casa em um domingo à tarde, quando Marcelo havia ido visitar sua mãe. Olhou para todos os cantos, não se reconheceu ali; aliás; nem sabia o motivo pelo qual adentrou ali um dia. Arrumou suas roupas, seus pertences, e deixou um singelo bilhete escrito no espelho do banheiro: Me desculpe, mas não dá mais, preciso da minha liberdade e descobrir afinal de contas o que quero da vida. Desse dia em diante, eles só se viram na hora da partilha dos móveis e cada seguiu sua vida, como se nada um dia houvesse acontecido entre eles. Sem brigas nem ressentimentos, apenas lembranças.
Fazia um calor infernal do lado de fora e as pessoas sorriam como se a felicidade fosse um bem comum.

domingo, outubro 15, 2006

Aborto


Falar nesse tema é sempre complicado, pois a maioria das pessoas vê o assunto sob uma ótica do atavismo religioso e não reflete bem sobre o que realmente é o aborto, suas causas, consequências e possíveis desdobramentos na sociedade, mas é sempre pertinente que se cutuque na ferida e falemos sobre o que se tenta varrer para debaixo do tapete. É o tipo da coisa a qual buscamos ter opinião neutra, a menos que vivamos a própria na carne ou ao menos algum conhecido próximo, sendo assim fomos agentes da nossa própria história, tendo propriedade pra discorrer sobre ele.
Pois bem, no Brasil o aborto só é permitido em casos de risco para a mãe ou o feto e em situações que envolvam estupro, e mesmo assim pode acontecer de este nem vir a se concretizar devido à morosidade da nossa maravilhosa justiça, que só tem o nome mesmo, há muito tempo ela deixou de servir aos interesses da população e beneficia somente à nossa querida e afamada elite, que compra juízes, promotores e quem mais puder e o dinheiro permitir.
Os mais puritanos dizem que é pecado, só Deus tem o dom de dar e tirar a vida. Pois bem, Papai Noel existe e vêm trazer presentes para as crianças comportadas todo 25 de dezembro. Sejamos mais objetivos e menos fantasiadores. Pessoalmente sou favorável ao aborto em quaisquer condições pelo simples fato de que a mulher é dona do seu corpo, sendo assim deve usá-lo da maneira que melhor lhe convier. Essa é uma das características da dita democracia, e no nosso país esse direito que seria devido a elas não vêm sendo cumprido, ao menos sob as asas da lei. Países mais avançados na questão sexual, como Holanda e Suécia, possuem clínicas especializadas nisso que são mantidas pelo Estado. Clínicas de aborto existem aos montes nesse imenso território, mas somente as mulheres das classes mais favorecidas têm poder aquisitivo para bancar o alto preço cobrado por esses profissionais. As mais necessitadas recorrem mesmo às curiosas, que cobram preços mais acessíveis. Em contrapartida parcela considerável morre ou fica com graves sequelas em consequência da falta de higiene praticada por essas mulheres.
Sim, os métodos contraceptivos estão à disposição das mulheres nos postos de saúde e hospitais, mas o melhor método mesmo é a abstinência sexual. Quem não quer ter filhos, que não transe, é o mais seguro. Mas o desejo da carne fala mais alto, não há método 100% à prova de falhas, e nesses casos, elas assumem uma gravidez indesejada, sendo que em alguns casos elas não possuem as mínimas condições psicológicas muito menos financeiras para dar à luz a essa criança, sendo assim estaremos sendo perversos e perpetuando mais um ciclo de miséria na nossa nação, com crianças subnutridas e futuros homens e mulheres à margem da sociedade, sobrevivendo miseravelmente, inchando as nossas periferias, aumentando os índices de criminalidade, superlotando ainda mais nosso sistema carcerário e sobrevivendo de Bolsa-Família (olha o Lula lá de novo, peço encarecidamente: tirem esse canalha do poder, varram essa corja maldita do Palácio do Planalto). A taxa de natalidade entre as mais carentes é aproximadamente 3 vezes maior do que as mulheres em boa situação financeira. Isso é fato!
Falando assim posso parecer preconceituoso, mas não é essa a intenção. Falo dessa maneira porque acho urgentemente que se revejam os conceitos e o tema seja encarado como problema de saúde pública. Se bem que legalizar o aborto acarretaria uma reformulação do sistema de saúde pública, com infra-estrutura adequada às mulheres que desejam passar por essa intervenção e até psicólogos para tratar dessas mulheres, entre outros aspectos nos quais sou leigo. Mas, como tudo no Brasil, o buraco é mais embaixo, não se pode mexer em uma simples parede sem tocar no alicerce, e essa discussão ainda rende assunto para muitos debates.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Eu + Tu + Ele/ELa + Nós + Vós + Eles/Elas = Eu


Pois é, viver sozinho, incomunicável e isolado de tudo e todos é praticamente impossível, ao menos em 100% dos casos. Impressionante como seres sociais, que dependemos do outro nas grandes e também nas pequenas coisas, não conseguimos subsistir unicamente com nosso próprio auxílio. Vivemos em uma intrincada rede social que tanto pode abranger nossos parentes mais próximos como aquelas pessoas que vemos nas ruas e provavelmente nunca mais tornaremos a botar os olhos. Seríssimo isso; ou seja; não dá pra fundar uma comunidade alternativa e a partir de então se autodenominar um remanescente hippie, vestindo longas batas, queimando incenso, sobrevivendo do artesanato e rejeitando quaisquer valores da socieade de consumo. Não existe nada tão a padrões que fuja de todas as teorias sociais percebidas até então. Pois para que possamos obter tais produtos precisamos desse tão maldito capitalismo, que abominamos muitas vezes mas que nos vemos reféns ao ver aquela roupa na vitrine da loja em promoção, 5 vezes no cartão. Olha que tentação, cabe no meu orçamento, deixa eu fazer as contas de cabeça pra saber quanto pagarei por mês.
Ao mesmo tempo em que podemos estar no meio da multidão, estaremos sozinhos, nus, desarmados em meio à massa em que todos deixam de ser únicos e passam a fazer parte do coletivo, do todo, como uma célula em um grande corpo denominado sociedade. É o meu papel nela vender a minha mão-de-obra em uma jornada de trabalho que não é a que eu gostaria, desempenharei uma função ou várias que não são aquelas às quais almejei, e receberei um salário aquém as minhas expectativas. Enfim, nesse ambiente de trabalho (ou seria tortura?), vou me defrontar com muitas pessoas, e delas não posso escapar. Estão no meu subconsciente assim como meus mais íntimos segredos aos quais não compartilho nem comigo mesmo. Mas nem por isso deixaremos de ser solitários, temerosos, queixosos, indagativos, questionadores do que somos e do papel que representamos nessa imensa teia social. Quantas vezes penso em pessoas que conheci em algum momento da vida e nem me lembro mais seu rosto, o que fazem atualmente nem sei se ao menos estão vivas. O que faz com que pensemos nas coisas mais absurdas nos momentos mais impróprios?
Posso dizer em qualquer momento, gritar em praça público ou apenas sussurrar a mim mesmo: deixem-me só, esqueçam da minha existência, eu não estou nem nunca estive nesse mundo, estou pegando um avião (olha o capitalismo de novo, eu trabalhando pra pagar aquela passagem da TAM em prestações) e irei morar no Nepal, virei budista e fiz voto de pobreza, dentre outros, o voto de pobreza compulsório já fiz há muitos anos. Mas não adianta, eu existo, e isso já me marca, faz com que em algum momento o meu vizinho de infância se lembre por minutos do meu nome, do meu rosto, do que brincávamos, ou qualquer outra coisa. Ou pode acontecer o reverso, eu posso lembrar da minha professora da 1ª série, da bronca na aula de Português, do modo como ela me fazia pegar no lápis, etc e etc. Fica por sua conta imaginar o que porventura lembraria eu dessa professora.
Ou seja, não consigo me desvencilhar dessa imensa teia social que me marca desde o nascimento. Se eu quisesse não poder compartilhar de nada disso, bastaria que eu não houvesse sido concebido, mas isso foge à minha alçada. Então, só me resta lamentar e recordar. Vai uma bebidinha aí?

terça-feira, outubro 03, 2006

Geração perdida


Sou um apaixonado pelos anos 60. Essa década foi mágica e quem a viveu sabe disso muito melhor do que eu, que sou fruto dos anos 80, com sua moda considerada totalmente out para os dias de hoje, sucessivos planos econômicos, redemocratização e sucessivamente valores inflacionários astronômicos. Quem viveu entre 1 de janeiro de 60 e 31 de dezembro de 69 sabe que não se passou incólume por tudo que se vivenciou ali, e não se pôde ser 100% cidadão passivo da história, ali todos participaram e contribuíram de alguma forma para que nunca mais se esqueça o que foram esses anos maravilhosos e por que não dizer inesquecíveis. A construção de Brasília, a crescente industrialização do Brasil, o êxodo rural, a UNE, o CPC, as Ligas Camponesas, a contracultura, o movimento hippie, o rock psicodélico, o assassinato de ohn Kennedy, a morte de Marylin Monroe, Os Beattles, Mutantes, Bossa Nova, a chegada do homem à Lua, o Golpe de 64, os Movimentos Estudantis que pipocaram país afora principalmente entre 64 e 68, Mary Quant e a invenção da minisaia, os festivais de música da Record que revelaram grandes talentos como Elis Regina, Nara Leão, Quarteto em Cy, Geraldo Vandré, Chico Buarque e Caetano Veloso, dentre outros, o movimento pelo reconhecimento do negro nos Estados Unidos, a pílua anticoncepcional, os rapazes de cabelos compridos, as moças com suas saias muitos centímetros acima dos joelhos, a geração beatnik, a primavera de Praga, maio de 68 em Paris, a Jovem Guarda com sua Ternurinha e Erasmo Carlos, o Teatro Opinião com Maria Bethânia e depois Nara Leão cantando Carcará, o Teatro de Arena com suas peças de contestação ao golpe, a nossa primeira telenovela moderna (Beto Rockfeller), a invasão ao Teatro Roda-Viva e espancamento dos atores em pleno palco, o famoso congresso da já clandestina UNE em Ibiúna (SP), claro que em 68....Nossa, quanta coisa aconteceu nesse período, e como eu adoraria ter vivido isso tudo, e principalmente ter participado das manifestações estudantis que eram contrárias ao regime militar. Eu sinto saudades do que não vivi, como isso pode acontecer?
Hj eu assisti um documentário chamado Sol - Caminhando contra o vento, produzido pela cineasta Tetê Moraes, que até então me era desconhecida. Ele se baseia em um jornal esquerdista produzido em 67 pelos jovens intelectuais do Rio de Janeiro de então, e faziam parte da equipe pessoas tarimbadas como Fernando Gabeira, Henril, Ruy Castro, Ana Arruda, os próprios Chico Buarque e Caetano Veloso, e tantos outros que não sabia quem eram, e omito os nomes pq sou péssimo para guardar nomes na primeira vez em que ouço. Esse jornal tinha a proposta de reflexão e principalmente denúncia das mazelas sociais sem tanto formalismo, o compromisso ali era com a verdade nua e crua, seja ela qual fosse. Mas não posso deixar de mencionar a importância de todos eles no sucesso desse maravilhoso veículo da imprensa que infelizmente viveu somente de setembro de 67 à dezembro de 68, sendo extinguido aos poucos com o famigerado AI-5. Percebi que eram jovens idealistas, sonhadores, preocupados com os rumos que esse país tomava e principalmente mudar esse mesmo destino, sendo que o socialismo naquela época estava em voga, a União Soviética ampliava seus domínios a largos passos.
Foi uma geração que foi às ruas, não teve medo de doar seu único bem, a vida, em prol de um ideal. Muitos foram presos e torturados, outros exilados, alguns faleceram e outros tantos caíram no caminho do então ácido lisérgico (LCD), ou outras drogas mesmo; ou seja, o destino não foi bondoso com todos que participaram desse jornal.
Quando vi a imagem da invasão da Faculdade de Filosofia da USP, que ficava na rua Maria Antônia, em São Paulo, e vi aqueles jovens, rapazes e moças ainda, com seus vinte e poucos anos, apanhando de cassetete dos policiais e ainda assim firmes e fortes, eu pensei: a que ponto a nossa juventude chegou, que anestesia foi essa, provavelmente espalhada pelo ar, que amorteceu a famosa contestação da idade, a vontade de mudança, a esperança de dias melhores? Aonde está aquela famosa mocidade que não aceitava os padrões impostos? Não há mais nada a mudar, já está tudo pronto? Será que o sangue derramado há quase quarenta anos atrás redime a nossa omissão pelos escândalos petistas e o capitalismo selvagem que cada vez mais e mais aumenta o fosso entre os grandes concentradores de renda e a imensa massa despossuída? É momento de reflexão, mas muito séria, para os rumos que esse país e principalmente, antes de tudo, a nossa consciência está tomando. Não digo para ninguém de uma hora para outra se enfiar no meio do mato e virar reacionário. Eu falo da chama que esse os intelectuais desse jornal, mas de toda essa década nos legaram, e nós estamos colocando água, dia após dia, até que chegará o momento em que essa luz se apagará e todos nós ficaremos nas mais absolutas trevas. E esse dia está por vir. Aí todos nos guiaremos pelas paredes e vamos nos perguntar o que fizemos de errado. Mas a nossa consciência nos dirá o quanto fomos imbecis e passivos perante a realidade à nossa frente, e que por comodismo não nos preocupamos em observar. Mas aí já será tarde demais. A luz nunca mais voltará.