sábado, junho 27, 2009

Sobre o Princípio


Enrolei a barra da calça até os joelhos, tirei os sapatos e me pus a andar pelo terreno cuja chuva recente ainda umedecia o barro, primeiro pelas suas laterais e depois desordenadamente, sem ao menos seguir uma ordem prática. Andava e me punha a imaginar sobre a construção que seria erguida dentro em breve naquele mesmo local, mas nada esquematizado, apenas uma breve lembrança de que dentro em pouco não existiria mais a terra nua, e sim um prédio que abrigaria várias pessoas e circunstâncias, situações e almas, carnes e vozes. Eu não me interessava realmente por essas pessoas, e sim pelo vazio que havia naquele instante, o que me unia ao terreno.Da mesma forma que havia nudez naquele local, eu também me havia posto nu, não de corpo,mas de todo o resto.

Querendo saber como éramos nós quando nós, quando ainda não havíamos vestido os tecidos que formam os complicados meandros da nossa existência, no instante em que ainda não havíamos nos dado conta que a raiz de todas as coisas seria a despidez de algo que não saberia precisar. Apenas o despojamento de todas as coisas, somente o início, puro e simples. O que desencadearia todo o processo. Mas cujas consequências na realidade não me importavam naquele instante, o que eu me interessava era antes da primeira palavra proferida, da primeira pegada, do primeiro ato, do primeiro gesto, do primeiro beijo e principalmente antes da visão do princípio, da gênese.

O porvir era apenas consequência, desviaria os olhos pela não-importância que isso havia adquirido em mim naquela hora. O que eu queria mesmo saber é como as coisas funcionavam quando elas nem mesmo haviam se iniciado, se é que houve um início para elas ou elas eram mesmo antes de se conhecerem como tais. Como terei sido antes do seu princípio, aliás, houve um princípio? Se sim, quando o foi e aonde coloquei o corpo quando assim o existenciei? E se houvesse me posicionado diferente, como teria sido essa gênese? Afinal, eu me iniciei de alguma forma ou ainda me encontro no ponto de partida, no que os esportistas consideram o grid de largada?

Antes que eu calçasse de volta meus sapatos, arrumasse a calça e saísse daquele lugar, tinha sentido que de certa forma eu era como aquela área desabitada e silenciosa. Me era e ainda sou, sem sombra de dúvidas. Após o assentamento do primeiro tijolo, as coisas nunca mais seriam as mesmas e um processo de modificação imutável haveria de ser praticado naquele lugar. Eu só queria saber como eram as coisas, se é que elas foram algo, antes do tal assentamento. Depois dessa inutilidade, bocejo novamente pois a sola dos meus pés já provocou alguma alteração no estado natural daquele espaço, assim como das pisadas anteriores. Ou seja, acho que nunca houve o início, o início por si só já o é.

sábado, junho 20, 2009

Sobre o Bocejo


Quando uma tarde me olhei na vidraça, percebi algumas marcas que ontem não estavam lá. Cicatrizes do que não percebia ter e ser. Fazer com que elas sumam é matéria ingrata, pois teria de me desfazer de todo o resto que me compõe, corpo e alma. Dicotomia. Armistício. Silêncio e voz. Sapatilhas e andrajos. Algo mais. Sei lá o que e mais um pouco.

Bocejei de madrugada e o som reverberou pelo resto do dia. Enquanto bocejava, percebi os dentes semicerrados tapados pela boca. Bocejava de mim, por não ter vivido em vários corpos e almas, e também bocejo de surpresa, de antemão pelo inesperado. Bocejo também de revolta pelo que não presenciei.

Adélia Prado esteve em Cubatão há alguns dias e soube do ocorrido horas depois. Quando surpreendido com o fato, restou-me apenas o bocejo como resposta. Obviamente o ideal seria que eu quebrasse os bibelôs da sala ou culpasse o neoliberalismo pelo meu lapso. Ou, na pior das hipóteses, entrar em um ônibus e oferecer a promoção: Senhores passageiros, tenho mulher e cinco filhos para criar, por favor ajudem-me comprando os chocolates Frederico. Na compra de três chocolates, enviarei por e-mail, como brinde, um quinto de uma bala Juquinha Moura Leão. Mas fiz beicinho e me autovilipendiei de forma ostentiva e costumeira. Eu ainda hei de tirar um daguerreótipo com Adélia. Nem que eu faça muxoxo e ameace, desde aquele instante, tornar-me leitor de Augusto Cury. Sinto que Adélia encheria seus olhos de lágrima e compadecimento de minha pobre alma e, sob súplicas, rogar-me-ia que parasse com tais sandices.

Pus-me então em posição de lótus, fechei os olhos a bocejar freneticamente, me imaginando no reino das delícias comestíveis e espirituais. Bocejo por você, por eu e principalmente por todos nós, cativos e sedentos. Principalmente os imbecis idealistas e que almejam ser melhores em alguma coisa, apesar de todas as dores passadas e presentes, mesmo que as estomacais.

Meu vizinho de banco coçou a cabeça e suspirou. Eu também suspirei, aproveitando o ensejo. E de quebra coloquei a mãozinha no queixo. Em nada pensei. Só me sobrou a revolta interior pelo não acontecido, pelo silêncio do dia e pelo ronco do motor do carro que passa na rua de trás. Viver tem sido tão enfadonho. Não tenho tido grandes emoções nem grandes depressões, ultimamente ando tão equilibrado que mal tenho tido porres homéricos com direitos a sabedoria de rodoviária. Falta-me tempo para as baboseiras comesinhas do cotidiano. Tom Zé me despreza, Vanderléia me saúda e as coristas do Roberto Carlos dançam ao som do Tchuba-Ruba da Mallu Magalhães. Ai meu Jesusinho, quanta cretinice. Me ser é tão sem-graça que arrancar duas linhas sobre meu eu é tarefa inglória.

Canalhices à parte, bocejo. E a imbecilidade de hoje encerro.



domingo, junho 07, 2009

Sobre o Envelhecer




Não aceito as pessoas que tentam minimizar os anos que se passam, como se eles de nada contassem e nós fôssemos imunes aos tempos idos. Envelhecer é assunto tratado de forma equivalente à morte, dois tabus que considero extremamente ultrapassados e delicados. Falar sobre e com a velhice é pisar em ovos adquiridos em promoção no supermercado do bairro. Dificilmente alguém assumirá que a juventude se perdeu em alguma das esquinas ou árvores com quem cruzamos pelos dias decorridos, pelo que não se terá mais. Dirão para aqueles que olham para as cicatrizes no corpo e na alma como uma forma de consolo: És ainda tão jovem, tens tanto a viver, não se deprecie. Envelhecer não é se depreciar, é se assumir como coisa, é saber que o tempo é findo e que a terra está cansada e já não é capaz de produzir coisa alguma, nem mesmo as culturas em que o solo requer menos esforço e insumos agrícolas.


Não confio no elixir da juventude eterna. Que eu me olhe na colher de prata e acaricie em tom de confidência minhas rugas e cabelos brancos. Que eu veja meus olhos e nele assimile o cansaço de ter visto e vivido tantas coisas, algumas doces e boa parte desagradável, atroz. Que eu tenha cansaço nas pálpebras. Que eu tenha os dedos enrugados. Que o meu viço já não seja mais o suficiente para encarar o longo dia de trabalho e que na metade dele eu sente, rode um anel entre os dedos e reconheça as marcas que a vida foi me deixando. Que eu olhe na vitrine e veja em mim a soma de todos nós e do que ainda porventura virei a ser. Que meu saldo ainda seja positivo e que ao tirar o extrato eu não veja números, mas sim reentrâncias. Que me sobre. Que eu seja ainda a sobra, que me esbalde no que fiz e naquilo que me exigi. Que a carne não me seja ainda tão cansada a ponto de colocar a cadeira de praia na areia e, ao olhar o mar, eu diga a mim mesmo que as ondas são o meu futuro. Eu sou o final daquele mesmo oceano, o braço de mar e a beira do rio.


Que eu saiba viver dentro de meu corpo e viver do cálice que cada dia eu me sirvo. Que eu apenas ache graça na juventude e diga que o tempo tudo curará, ou acentuará. Que eu não minta minha verdadeira miséria e saiba dizer sem tom de dores que eu fui incólume. Incólume sei que passei, e nada posso fazer para reverter o que o sol dos quereres antigos não me fez ter e ser. Mas que ao anoitecer eu olhe para o que me fui no dia que se foi e não me castigar pelo como deixei de proceder. Enfim, pois bem, que eu saiba envelhecer. Eu já envelheci e o que me virá apenas me acrescentará. Algumas coisas fatalmente me subtrairá, mas em nada poderei agir, pois meu corpo é uma espécie de matemática ensandecida. Cada dobra que os anos me trouxeram são atestados de benfazejo. Eu me fui, eu continuo e me sendo e ainda me serei pelos anos que me sobram. Mais velho, fato consumado. Mais experiente não sei dizer. Não posso propalar que eu tenho sabedoria, pois a ignorância é meu bem mais precioso. Mas, quando jovem, não poderia me assumir inteligente. Agora, tendo sido jovem e em vias da decrepitude, eu dou-me o direito do riso por ser estapafúrdio.


Posso ter colocado aqui as coisas mais imbecis, mas se me autocensurar nenhuma palavra me será genuína. Só me sou na confusão e no obscuro, sendo assim desculpem-me.


Resumo da ópera: a juventude é rock´n roll e cuba libre, a velhice é Ravel. Cada um que aprecie o que melhor lhe aprouver. Ou o que souber ver.