sábado, julho 26, 2008

Produto descartável


Lembro-me que, há alguns anos atrás, principalmente durante a madrugada, a música que tocava no nosso inconsciente se retirava de cena e me vinha uma certeza à tona: nada do que estava sendo vivido me deixaria saudades. Mais precisamente, havia a falta de algo que se pudesse recordar. Mas o tempo passou e no meu interior essas sensações se arquivaram por si só. Permaneceram intactas, como se nunca houvessem existido, até uma fatídica noite em que me deparei com as tais verdades que me sacudiram novamente, mesmo que de forma suave.

Costumo andar por aí observando os rostos e suas expressões, me perguntando se algum deles, em algum momento se sentira deslocado e tão fora de propósito como eu. Confesso que sinto uma espécie de prazer masoquista na constatação da "nobreza" da minha alma, mesmo sabendo o quão sou reles e presunçoso por me oferecer tal alcunha.

Caiu-me nas mãos a constatação cretina e absurdamente real: como poderiam essas pessoas com quem divido a calçada se sentirem como eu? Essas pessoas efetivamente existem, não importando se por vias tortas, mas elas vivem e como vivem! Da maneira delas, isso não importa. Mas, se pudesse eu pegar um gravador e propor a qualquer uma delas que me contasse suas histórias de vida, tenho absoluta certeza que experimentaria ao menos imaginar situações que nem ao menos soubesse que existiam. Pessoas que amam, foram amadas, fazem amizades, inimizades, família, aparentados, situações vexatórias, momentos de glória, viagens, lágrimas, dores, trabalho, dinheiro, compromissos, afeto, crianças, velhos, objetos e animais de estimação, e tantas outras coisas que não consigo enumerar.

Mas o mais inquietante seria: a teia de relações humanas estabelecidas há tempos imemoriais, que faz com que uns se recordem e façam parte da vida dos outros. Simples assim. Cada qual com seus momentos de delicadeza, mas também outros de perturbação.

Sendo assim, fui obrigado a me retirar de tais estatísticas. Sempre estive à margem da vida e de seus desdobramentos, e mesmo quando estive inserido no tal contexto minha participação foi mínima, praticamente nula. Nem fui percebido por quem ali estava naquele instante, e mesmo quando um ou outro deu com as vistas por cima de mim, continuou sua rota como se eu fosse um objeto de decoração, que nada altera na esfera do ambiente. Algo que não desperta paixão nem ódio. Não desperta ao menos indiferença. Não desperta nada, somente ocupa espaço e não possui serventia alguma.

Mas seria imbecil culpabilizar quem quer que seja. Por esse fato, talvez nem a eu mesmo. Sou apagado demais e desprovido de quaisquer atrativos que façam com que as pessoas me olhem com inveja, desdém ou admiração. Passo inclusive pela arena, assumindo em voz baixa que adoraria fazer parte dessa miscelânea de sabores e sensações.

E o que faço eu com tal descoberta? Coloco-a no bolso e continuo, aparentemente, como antes. Mas ainda mais fragmentado.


sábado, julho 19, 2008

Um pedido...


Está um dia ensolarado, bonito, as pessoas vêm e vão sem se importar com essa claridade excessiva, preocupadas com seus afazeres e o cotidiano que nos enleia sem que nos demos conta disso. Me dá um beijo, me dá um abraço, me dá tua mão, me dá teu corpo, me dá teu coração. Me dá um cigarro. Me dá uma bebida, só ébrio digo-te as coisas límpidas que sóbrio gaguejo, mas não confesso por pudor. Me tira desse torpor. Me tira desse poço escuro e úmido. Leva-me embora desse lugar que me faz tão mal. Me ensina aquilo que nunca aprendi, a viver e amar sem me questionar sobre o porvir.
Este seco na minha garganta anda-me a corroer as entranhas. Perdoe-me por tantas queixas descabidas, por me maltratar tanto e não te dar o valor devido. Dá-me uma existência comum, banal até. Por ti jogaria velhas teorias na vala e reaprenderia todos os conceitos novos que até então andam arraigados na minha carne ainda putrefata. Nunca suspeitei que chegarias em uma tarde nublada e achasses tudo em tal desordem, o interior feito de caos. Não tive tempo de preparar-me à sua chegada, vieste tão de repente. Pisaste no lixo, sentiste o mofo da casa fechada há anos, as lâmpadas que não eram usadas há tempos incontáveis, minha aparência crua e abjeta, as roupas em desalinho, a barba crescida, as olheiras profundas e aquele olhar que te percebia incandescente.
Te recebi mudo, sem ao menos balbuciar o que quer que fosse. Vieste em boa hora, mesmo que a minha fome e sede te chamassem inconscientes há muitas semanas e meses. Mesmo o jardim anda descuidado, nem sentirá mais o perfume das flores que invadia os quartos ao abrir as janelas, logo pela manhã. Encontro-me faminto no corpo e no espírito. Perdia a cada dia os restos humanos que me equivaliam àqueles do lado de fora. Mas ainda há tempo de colocar tudo a seu contento, tenha um pouco mais de paciência. Não desista de mim ainda tão cedo. Eu não posso mais continuar aquilo que fui e ainda o sou.
Sei que me acomodei, mas quando me apercebi já era tarde. Tarde demais. Já é tarde, bem o sei, mas o que resta ainda pode ser transformado, reconstruído. A mudança será lenta, gradual, mas ela será feita, mesmo que a solidão, o escuro, o desespero e a angústia tentem me demover disso. Joga-me uma corda, deixe-me sair desse poço. É da tua mão que necessito hoje e do teu sorriso. Que seja doce, que seja doce, que seja doce por um tempo incontável, a cada anoitecer cada vez mais doce...