sexta-feira, maio 30, 2008

Não dou, não vendo, não empresto e nem arrendo!


Era uma moça sentada no banco da praça com o seu chocolate. Sorria magistralmente com as pernas hermeticamente juntas. Só não batia palmas de satisfação pelo fato de uma de suas mãos estar ocupada com o doce. Mas não se sabia mais aonde acabava o chocolate e começava a mulher propriamente dita, tão envoltos estavam ambos no mistério de existir, de ser. Enfim, ali estava o mistério da coisa. Os dois eram vida dependentes entre si para continuar subsistindo. Mas eis que à sua frente passam uma outra mulher, aparentemente mais velha, tendo em uma de suas mãos uma criança que supõe-se ser seu filho. O menino, meigamente, roça sua mãozinha na blusa de musseline de sua mãe, e propõe, inicialmente em voz baixa:

- Mãe, eu quero.

- O que você quer, meu filho?

- Eu quero o chocolate daquela moça ali, está vendo?

- Ah, meu filho, vamos embora, eu compro um doce para você perto de casa.

- Mas, mãe, eu quero aquele chocolate!

- Meu filho, aquele chocolate é da moça, pare de me perturbar e vamos andando.

- Ah, mas eu anseio ardentemente por aquele chocolate, outro não serve. Vamos logo, mamãe. - E empurrava sua paciente e amorosa mãe em direção ao seu nirvana terrestre.

- Oi, Boa Tarde!

A moça com olhar taciturno viu-se quebrada de seu mais recente encanto e responde mais por automatismo do que por educação:

- Boa tarde.

- Moça, esse é o meu filho. Sabe, passamos perto de você e ele encasquetou que quer um pedaço do seu doce. Eu disse a ele que compraria outro igual ao seu,mas essa peste é teimosa como o cão. Hoje o pau vai comer lá em casa. Ah, se vai!

-Eu não posso... - a moça ficou de tal forma absorta na proposta que mal conseguiu balbuciar tais palavras.

-Tá vendo, Helinho? Vamos embora, deixa a moça em paz. - dizia enquanto a criança olhava com olhar pedinchão o tal chocolate.

-Moça, me dá um pedaço, vai? Bem pequenininho, só uma lasquinha, vai, me dááaáááá.

A criança fez um muxoxo.

- Por favor, dê um pedaço só, criança não entende muito bem as coisas ainda. Mas hoje a cinta vai cantar, ah se vai, vai sim!

- Mas eu não posso mesmo....

- E por que não?

- Sabe, eu economizei muito para poder comprar esse chocolate. Está vendo como estou magrinha? Fiz um jejum de nordestino para poder comprar essa joça. Quando passo na rua a molecada fica assobiando: Olha a A-NO-RÉ-XIIIII-CAAAAAAA. Eu quero morrer com isso, mas assim é, fazer o que?

- E o que esse chocolate tem de tão especial assim?

- A senhora está vendo esse desenhinho amarelo no canto esquerdo superior da embalagem? Pois é, o cacau que contém aqui foi pisado pelos três dedos do pé esquerdo de uma senhora de 41 anos e cinco meses moradora do litoral da Costa do Marfim. E esse fator alterna enormemente a textura e o sabor desse chocolate. Encomendei-o a uma fábrica belga, que me fichou na Interpol e me investigou durante seis meses para saber se eu realmente sou uma compradora em potencial desse doce. E ainda assim tive meu passaporte confiscado e não poderei sair do Brasil durante três anos, pois temem que eu contrabandeie pedaços do chocolate para os espiões poloneses.

E o garoto berrava, berrava e berrava mais alto. Enquanto isso, juntava gente por perto acompanhando o desenrolar dos fatos. A mãe clamava aos céus para que aquele pesadelo acabasse e a moça só fazia cara de poucos amigos e explicava que isso não seria possível, que assim não podia. A turma do deixa-disso já havia até se dividido em dois partidos: as pessoas que gostariam de ver o circo pegar fogo, enquanto alguns outros clamavam pelas liberdades individuais e ameaçavam chamar os Direitos Humanos por estarem constrangendo a moça.

E o tempo passava lento e arrastado.

Resumo da história: a mãe e a jovem se atracaram, cada um defendendo seus interesses, e agora ambas estão na delegacia do bairro fazendo exame de corpo de delito e o garoto foi mandado para um orfanato, onde foi colocada na sua frente um prato de plástico imenso com muitos chocolates em suas formas variadas, sendo obrigado a degustá-las sobre o olhar cândido de freiras dominicanas.



sábado, maio 24, 2008

Aquele que coça a cabeça


Acho tão estranho quando alguém demonstra afeição por mim, por mais que no meu interior o que mais almeje é ser aceito pelas pessoas assim como sou, com meus medos e frustrações. Mas não me agrada quando tentam me convencer que a minha forma de ver a vida e seus enleios não é a forma mais correta de viver. Afinal de contas, como que se faz para viver? Se alguém souber essa resposta, por favor me forneça essas informações pois ando em busca do Teorema de Pitágoras há muito anos, sem respostas conclusivas, apenas reticências...

Essas coisas que aqui escrevo parecem por demais abstratas para a grande maioria das pessoas que, a este momento, a poucos quilômetros de onde estou, aproveitam esse dia de sol nas praias e na convivência social. Mas é a minha realidade mais íntima e discreta, que mesmo assim sendo, urde por se fazer aparecer e muitas vezes está estampada na minha cara. Cara de quem não sabe o que fazer, como e o que dizer nas horas mais apropriadas e, principalmente, cara e corpo de quem não sabe o que fazer com esses acessórios recebidos em uma caixa de presente com laço de fita muito jeitoso e chamativo.

E o pior de tudo é que tento não demonstrar o quão no fundo sou carente e só, mesmo usando do velho discurso de que adoro a solidão. Não estou utilizando da autocomiseração, e se assim pensares não poderei te demover dessa idéia, apenas contra-argumentar com palavras que no final das contas acabarão não convencendo nenhum de nós dois. Não sei o que fazer da liberdade que me foi concedida, que rumo tomar ou simplesmente continuar pelas curvas que a vida foi me levando inconscientemente da minha vontade.

Possuo uma espada de dois gumes nas mãos: tenho o livre-arbítrio e não sei o que fazer dele. Esse sol que invade a janela na qual estou próximo só me faz ter mais certeza de que todas as coisas hão de passar, não importando o que virá depois delas, muito menos se haverá uma continuação. Sim, mas sempre há um porvir, e depois outro, e mais outro. O ciclo é infindável e a verdade é que muitas coisas escapam ao nosso controle.

Enquanto isso, bocejo e divago a cabeça nas horas vagas e procuro não repetir esses mesmos atos quando tenho algo a fazer que me tire dessa letargia e me faça sentir um pouco mais produtivo do que ando me sentindo. Mas é instintivo: lá venho eu com o meu provável poder sobre mim e o mundo e o fato se espatifa ao meu redor sem que eu nada possa fazer para alterá-lo ou melhor, evitá-lo. Não saberia exemplificar o que digo, até porque não sei em que ponto uma tal situação se conclui e onde outra se inicia. Falta-me o discernimento da coisa. Falta-me saber como lidar da melhor maneira com a tal coisa. A coisa é, simplesmente, e escapula ao meu entendimento. Ela o é sem que eu a queira.

Enquanto isso, continuo sentado no banco da praça, com a mesma cara de paisagem costumeira, tentando esconder meus olhos dos raios ultra-violetas, mas é sempre a mesma visão embaçada entre a razão e a emoção. Somente mais um entre tantos outros com os quais cruzamos diariamente. Mas com a leve impressão de que mais só, infeliz, triste, solitário e algo o mais. Esse algo o mais também me assusta.

quinta-feira, maio 22, 2008

A Metamorfose


O espelho embaçado pelo vapor da água quente me inspirava a escrever alguma coisa que ao menos naquele instante demonstrasse a minha pretensa imortalidade. Mas as danadas teimam em se enfurnar em algum buraco escuro e quando necessito dessas moças elas mangam da minha pessoa debaixo das minhas fuças e fazem questão de ser malcriadas, ressurgindo das cinzas quando elas não são mais necessárias.

Sendo assim, só me restou fazer cara de bom tacho ou mesmo a minha famosa cara de paisagem, como se tivesse sido pego em alguma traquinagem devida que me renderia umas boas palmadas ou mesmo alguns minutos sentado no canto da parede refletindo sobre minha ação criminosa. Ou, como diria meu amigo Paulo, faria cara de bondade e tentaria convencer o interlocutor da licitude do fato.

Mas, enfim, eu não sabia o que haveria de ser escrito ali, apenas idéias desconexas que sozinhas não formavam sentença alguma. Se bem que, mesmo assim, meu instante criador se esvairia no instante em que desligasse aquele chuveiro e a temperatura por si só se ocupasse de destruir meu insante escritor. Mas sou teimoso e birrento e faço questão de não ser vencido pelas circunstâncias, mesmo quando estas me provam que são mais vigorosas do que aquele que vos escreve.

Tive a impressão de ter sido jogado em um imenso palco sem prévio ensaio, apenas uma folha em branco sem nada datilografado, sem que me fosse passado o que deveria falar, quando, onde, em que circunstâncias e como me portar em relação ao meu corpo. Mas assim fui e estou até agora. Aos trancos e barrancos, mas vou. Sou insistente por demais e cometo muitas gafes, mas uso de minhas faces bondosas e escapulo aos comentários alheios. Um dia, de tanto insistir, eu acho essas respostas. Aí ficarei impossível. Menos sorumbático e mais paciente. Menos metamorfosse. Mais pessoa. Não sei as consequências que advirão dessa descoberta. Mas me rendo ao desafio. Ai de mim, meus caros!

domingo, maio 04, 2008

O processo


Cabelos despenteados e muitos fios brancos, calvície proeminente, barba de alguns dias, All Star velho, roupas puídas, mãos nos bolsos e olhar desconsolado e baixo. Esse seria somente mais um desnorteado da sordidez urbana, mas me refiro a mim mesmo. Um resumo nada prolixo de um ser de estranheza agressiva. E invariavelmente um cigarro sendo fumado vorazmente. Muito mal humor quando não há cigarros a serem degustados. E idéias, muitas idéias. Imagina-se andando pelo centro de uma grande metrópole recitando Rimbaud em francês. Mas não conhece Rimbaud tampouco fala esse idioma. Um sádico. Estranho. Somente mais um rapaz não muito jovem que anda pela cidade em direção a algum lugar, como as outras pessoas com quem divide as calçadas. Mas geralmente não há lugar algum a ir, anda-se a esmo. Mas somente em lugares já conhecidos anteriormente. Esse moço não se aventura por locais aonde nunca esteve. E pensa, pensa e repensa. Se lhe perguntam acerca do que tanto divaga, não saberia responder. Sente-se privilegiado por ser tão apagado que não chama a atenção de ninguém. Assim, é anônimo, não lembrado e muito menos comentado. Se depara com sua imagem no vidro de uma vitrine qualquer, e apalpa abaixo dos olhos, onde se depara com algumas olheiras, e marcas de expressões na testa. Mais uma vez se pergunta se quem vê é ele mesmo ou apenas a imagem de quem não gostaria de ser. E sente que nasceu no corpo errado. Mas é o que possue no momento. Aliás, em todos os instantes. Foi-lhe dado um corpo sem ao menos ser questionado se sua vontade era respeitada. Não houve um prévio ensaio. Ele foi jogado nas ruas sem ao menos instruções de como se comportar perante as pessoas que o amedrontam e essas construções que lhe são estranhas e assustadoras. Sente-se um ordinário. Quando sente algo sobre si, pois observa muito mais aos outros e sente medo do julgamento que farão dele. Tem impulsos de sentar em qualquer lugar onde possa se sentir um pouco confortável, mas algo lhe diz a ilicitude do ato. Sabe que tem um local para morar e passa uma parte do dia ali, mas olha para aquelas pessoas e não sente nada por elas, apenas confusão. E tristeza. Mais uma vez sabe que não vive da forma que deseja e que aquelas pessoas as quais lhe disseram algum dia que são seus familiares não lhe inspiram nada mais do que um oco no fundo do estômago e no resto dos locais vazios do corpo. Aliás tampouco questiona como seria a vida ideal. Este rapaz não muito jovem não sabe viver. Ele na realidade nem sabe porque está vivo. Apenas segue a ordem das coisas, sem se revoltar concretamente com o presente que lhe foi dado sem embalagem muito menos um laço dourado. Em algumas circunstâncias é visto dialogando com uma pessoa qualquer, mas prestando-se atenção, atenta-se para o fato de que trata-se de um monólogo. Sua timidez o impede de falar mais do que parcas palavras que aliadas fornecem informações de pouca valia. Mas a verdade é que ele não sabe o que dizer, onde colocar as mãos muito menos para onde olhar enquanto conversa. Mas percebe-se que tem um sorriso infantil que exprime ainda um quê de meninice não perdida. Enquanto acende mais um cigarro, pessoas passam em seu redor e não se atentam que são extraordinárias, e que estar fora desse círculo ou mesmo roda denota um preço alto os quais poucos se dispõem a pagar. Na realidade, alguns pagam compulsoriamente, sem serem consultados sobre a vontade ou não de não participar dessa roda. Eles apenas imaginam como seria estar dentro dela. E nesses instantes a imaginação voa longe, tão longe. Como quando era criança e acreditava que a vida seria para todo sempre tão simples e singela. Mas os anos passaram impiedosamente, e com eles veio a insônia, o roxo abaixo dos olhos e as costas meio curvadas, como que para se esconder da vista de todos.