sábado, maio 30, 2009

Recado para o Fabrício Carpinejar


Fabrício, sente aqui que eu preciso chamar-lhe às falas. A questão é a seguinte: sinto-me o mais boçal dos seres viventes quando tenho em mãos algum texto seu. Como se eu nada tivesse vivido e muito menos algo experimentado. Você consegue fugir do lugar-comum quando se fala em amor, tema tão surrado e exaustivamente destrinchado. Como se o ato de amar fosse quase que exclusivamente para a sua pessoa sensação única e exclusiva, com todas as suas dores e delícias. Por sua causa, sinto-me canalha e putrefato, por ter me rogado a viver alheio a terreno tão frutífero e minado.

Com Fabrício me vi cego, surdo, mudo e leproso. Eu não sei ver, não sei sentir, não sei tocar, falar muito menos existir. Sem passado, presente e futuro. Olho para suas palavras e me vejo olhando para o infinito, como se vivesse em uma redoma de vidro e não tivesse me obrigado a existir desde sempre.

Você me dói, Fabrício Carpinejar, como cacos de vidro cortando fundo minha carne. Como forma de protesto, aqui vai um texto que sou eu, indissoluvelmente. Irremediavelmente esse texto é o meu espelho.

E mais uma ameaça: se eu vivesse no Rio Grande do Sul, eu moraria provisoriamente na sua casa. Levaria um colchão, caderno e algumas canetas. E só sairia de lá com um certificado com sua assinatura registrado em cartório e com algumas testemunhas corroborando que lá estive. Pois não se pode mais ser o mesmo depois de Fabrício Carpinejar.


Não ser amado


Passa-se da idade de casar, como se houvesse idade para isso. Passa-se da idade de ter filhos.Suporta-se o desespero de guardar um cheque em branco assinado com o temor de nunca descontá-lo.
Quem colocou limite em nosso tempo?
Regulamos a nossa vida em comparação com as outras, desde a infância até a maturidade, desde o jardim até o asilo. Semelhante a dirigir com o velocímetro quebrado e comparar o que se anda pelos demais carros.
O ritmo não pode ser imposto por fora.Convence-se de que não se é amado.
Não ser amado é pior do que ser invisível. É narrar o que faltou acontecer. Fica-se grávida da vida que não se teve. O peso de um corpo que sequer existiu para continuá-lo em pensamento.
Não ser amado é pior do que ser invisível. Pois nascer não é o bastante para ninguém.
Não ser amado é o mesmo que carecer de pálpebras.É o mesmo que sofrer uma insônia parcial, somente nos ouvidos. É chamar atenção para as virtudes quando os defeitos não param de falar.
Não ser amado é pior do que ser invisível. As portas do guarda-roupa são as venezianas que espreguiçam a casa, e nada é suficientemente justo para dar folga à alegria.
Não ser amado é não encontrar cintura para as palavras. É um castigo mais severo do que o ódio. É mais grave do que esquecer.
Não ser amado é perder a possibilidade de contestar o próprio destino. É morrer de uma saúde incurável. É participar do mundo como se ele estivesse sempre por ser criado. É colar o fogo porque não há carta para ser queimada.
Não ser amado é se diminuir para dormir, se aquietar no almoço familiar, não mudar a assinatura de adolescente. É pular os fatos por não fazer parte deles. É sentar em uma escada para não cair em falso. É não levar uma foto 3x4 na carteira.É correr o domingo para chegar na segunda.
Não ser amado é um crime que não se teve culpa, um castigo que errou de irmão. É voltar aonde não se esteve.
Não ser amado é concluir que o final poderia ser diferente se tivesse havido um começo.É escolher tudo na vida para contar com receio de faltar história. É a velhice avançar sem trazer vergonha; é a velhice avançar com a indiferença ao colo. É voar como um pássaro e ser chamado de morcego. É gastar o parapeito da janela mais do que a porta.
Não ser amado é acreditar que o amor significa apenas receber.




sábado, maio 23, 2009

Sobre o Olhar




Quando olho, muitas vezes calo-me, mas mesmo assim digo alguma coisa. Não verbalizo, mas exprimo. Faço, quero, desejo, sou, estou. Olhando digo muitos quereres. Somente eu não, mas todos nós homens e mulheres de boa vontade que precisamos de algo que muitas vezes não sabemos dizer com o uso da palavra, mas que ao piscar é expresso da forma mais sutil. A palavra falta, mas o olhar abunda. Abunda sobre o céu, a terra e em tudo que neles há. Inclusive nós, que desejamos o outro com o olhar. Lascivo, pidão, incipiente, quente, terno, fugaz. Olhamos mesmo quando o que vemos não é do nosso agrado. Olhando com olhares tantos quantos sejam os moradores de nossa cidade. O que tu vês não é o mesmo que vejo eu, sendo que falo das mesmíssimas coisas que aparentemente não tem o porquê de serem vistas de forma diferentes. Mas ser humano também é ver só o que se deseja. O que se espera. O que não se tem. O que se poderá ter em um futuro não muito longínquo. O que são apenas delírios sem o dormir. Ver com olhos de crianças, adultos e idosos. Até mesmo ver com os olhos do animal manso e doce que nos pede carinho. O animal não sabe dizer-nos: Me afague. Mas sabemos seu desejo quando olhamo-nos os dois com cumplicidade.

O amante não precisa muitas vezes dizer que ama, mas ele apenas pisca, com as pestanas em brasa. O ser amado sabe nos olhos contém amor. E quem odeia também não diz, pois dizer seria somente exclamar o que está sendo mostrado de forma muito mais voraz com o olhar. Olho para a câmera que me fotografa como se soubesse que além do corpo estou desvelando a alma com meus olhos. Soubesse não, olhando estou demonstrando que assim sinto. Assim me revolto e assim me condôo por tudo ver e nada poder omitir. Quando vi que poderia ver muito mais do que assim imaginava, me vi vendo o sobejo, o exagero. Exageradamente olho as pessoas procurando em seus olhares o que sejam meus olhos.

Mas olhar não pode ser encarado de forma automática, penso eu na mais muda ignorância que não é expressa na palavra. Até porque o olhar nunca se esgota, e está em ciclo eterno de delicada transformação. O olhar me faz, o olhar faz você, o olhar faz todos nós pedintes de um olhar mais crítico. Eu vivo, portanto vejo. O passante ao meu lado, as árvores, carros, prédios e gatos refastelados na calçada. O que me impressiona não é o simplesmente ver, mas como se vê. A posição que se toma perante o privilégio. Sendo assim, deliciem-se ou doem-se com os olhos. Que tanto pode alimentar quanto nos fazer mais famélicos do que comumente somos.

Talvez no dia em que souber como olhar eu seja mais pleno, mais completo. Talvez eu olhe para dentro com menos acidez e mais doçura.

terça-feira, maio 19, 2009

Sobre o Vôo


- Eu quero voar!!!!!!!!!! Já estou farto dos desenganos que me traz o chão pedregoso, quero tocar nas asas das aves e experimentar uma sensação de liberdade nunca antes vivida. Eu quero mais com o que me contentar, eu quero ter muito mais para poder sobejar, forrar os bolsos, distribuir aos meus colegas. Eu quero a ganância do sobrar. Quero ter o ímpeto de espalhar sementes no chão antes da chuva e ser o responsável pelo criar. Quero deitar na cama e ter ao meu redor o sobejo. Quero lambuzar a mim e aos outros desse vôo entusiasmado. Eu quero dançar no gramado em plena tarde abafada sem ter com o que me ocupar. Que o pão não me seja caro nem fastidioso. Que as horas passem sem eu me dar conta delas. Que eu seja irresponsável com as contas a chegar. Que no cinema eu possa gargalhar sem aos outros incomodar. Que o verbo eu possa usar sem censura, e no coração dos outros eu possa tocar. Mais, mais, mais e muito mais.

Pois bem, assim o quis e assim eu o fiz. Quando dei por mim já estava a muitos pés de altura e no infinito campo de visão eu só via verde e mais verde, vacas pastando, plantações de hortaliças e ao fundo construções do que supus ser uma vila.

Preparava-me para o salto sem em nada externo pensar. Só queria chegar naquele chão e perfume novo aspirar. De tudo que me fosse novo experimentar. Surdo estava ao que o instrutor me dizia, inflamado estava pela ânsia do que estava a me recepcionar. Tanto esperei por esse vôo que tudo o mais se tinha tornado dispensável. Se, se.. Bah, do que me importavam os prejuízos quando lá embaixo eu teria uma mina a escavar. Eu não queria pensar, mas agir, acontecer, ser, poder. Tudo que me fora negado eu fazia questão de ter, nem que para isso eu tivesse que portas arrombar e vidraças arrebentar. Aquilo tudo lá embaixo era só meu, todo meu, irremediavelmente meu.

1,2,3...Pulei. O barulho do som do céu me ensurdecia, com as nuvens muito densas acima de mim a me acompanhar e dividir comigo aquele local de passagem. Não sei quanto tempo ali fiquei muito menos quantas piruetas executei. Eu ria como criança que se lambuza de sorvete. Como era bom voar. Ainda me dói de alegria aquele vôo, a sensação de liberdade conquistada. Esfregava as mãos de puro contentamento. Era chegada a minha hora.O cheiro de ar puro adentrava meus pulmóes. Tinha tanta coisa a fazer quando botasse os pés na terra vermelha...

Pousei.

Logo após acordei.

Na cozinha a água do café fervia no bule.

domingo, maio 17, 2009

Sobre a Palavra


- Ei, Dindi, o que tanto você coloca nesse pedaço de papel?

A caneta caiu no chão e fiquei com a mão pendente no ar. Como poderia responder-lhe se nem ao menos eu tenho tal resposta? Tirei os óculos e coloquei-os cuidadosamente sobre a mesa de centro. Teria que me despir e me aventurar por mares desconhecidos se quisesse dar continuidade ao assunto. Durante algum tempo abria a boca mas dela não saía som algum. Uma espécie de atordoamento havia se apossado de mim e anestesiado fiquei naquele ambiente, claro e silencioso. Estralei os dedos em sinal de nervosismo e uma saliva amarga se alojava entre os dentes. Meus batimentos cardíacos se aceleravam e uma força do que a que supunha ter se apossara de mim:

- Acho que escrevo simplesmente porque não choro mais. Já há tão longo tempo que não choro mais por me ser, mesmo que seja de alegria por sobreviver apesar dos pesares. Vivo de olhos baixos, mas quando os levanto o sol continua brilhando, as pessoas passam apressadas ao meu redor, os prédios continuam cinzentos e os músicos contando moedas nas praças. O mundo está aí, girando sem cessar, a roda incessante rodando e rodando independente do meu piscar para observá-las. Crianças nascem, moribundos falecem, flores desabrocham, casais se desfazem e batem as portas dos apartamentos com revolta, as ondas continuam batendo nas rebentações, bancários autenticam documentos, idosos consomem e passeiam nos supermercados, adolescentes riem e se beijam, vizinhas fofocam, torcedores matam e morrem por seus times e tudo o mais acontece durante as vírgulas em que pontuo as frases. Mesmo que eu não existisse, nada seria modificado. Quando cheguei aqui, a sorte já havia sido lançada e os jogadores dispunham as suas armas nas apostas. Quem tem de se adaptar sou eu, e não os outros. Enquanto alguns apalpam as paredes, eu toco na caneta e olho a esmo procurando algo com o que preencher essas linhas. Se algo nisso tudo é válido será consequência do que está sendo dito agora, ou mesmo do eco das coisas passadas, das gaivotas em meio aos faróis. Eu só quero um lugar na engrenagem, ali mesmo onde existe aquele espaço vazio e macilento. Mais um amanhecer, outro dia, mais uma mão e um sorriso, chaminés de fábricas, boinas, tangos e elevadores. Sapatos e cactos. Água sem gás e mármores nas bancadas dos zeladores. Tulipas e telhados. Gaudi e Tarkowski. Televisão e poesia. Camisetas e portas. Gravatas e gritarias. Britadeiras e buzinas. Não me pergunte mais pois o gosto de vômito permanece na boca. Em mim mesmo e em todas as outras coisas. Feche as cortinas. Os olhos. A alma.