sexta-feira, novembro 23, 2007

Nu


Eis-me nu. Vestido com as roupas que o Senhor me deu. Sem nada a esconder as vergonhas e todo o resto. Exposto ao frio, ao calor, à chuva, ao sol, enfim, às intempéries da natureza. Conheceste agora tu que me vês assim, não somente a carne, mas sim os sentimentos que exponho como ferida em brasa e brado alto em praça pública. Aqui estou, na presença de todos, expondo aquilo que fui, quem sou e o que porventura serei um dia. Apenas nu, sem apetrechos alguns nas mãos, e estas nem ao menos a esconder o meu sexo. Mas por que estou nu?
Nu porque assim viemos, e assim voltaremos. Não nus somente com a roupa que reveste nosso podre corpo, mas nus de alma, de espírito, nus de flagelos e sentidos. Não se espante com essa visão, estou apenas nu, ou pelado, como quiser interpretar. Pelado sim, e que mal há nisso? Sim, estou cometendo um grave atentado ao pudor, bem o sei. Mas continuo nu enquanto não me cobrirem com alguma coisa que, além de me aquecer o corpo, possa me fazer compreender a alma dos homens, que, além de tudo, é nua de nexos.
Nu sou eu, nu é você, nu somos nós. Estamos todos nus diante do espetáculo que se apresenta durante as vinte e quatro horas do dia. Não sabemos o que fazer da nossa nudez. Muitas vezes nem nos damos conta da nossa nudez. Não a física, mas a nudez da alma. Nus ficamos quando não percebemos que não é a nudez que choca as pessoas, mas nosso caráter, ou a falta dele. Veste sua capa de sacripanta e pensas que com ela estarás acima do bem e do mal, do julgamento dos homens, e quem sabe do divino também? Há que atentar a todas as hipóteses, no momento em que se conta com o privilégio da roupa em uma terra de gente nua. Mas há o tempo. Ah, o tempo, esse destrói não somente os castelos de areia e molda as pedras das cavernas, mas também se encarrega de todas as torpezas nossas de cada dia.
Mas continuas tão ou mais nua do que antes. Há pureza e beleza na nudez, mas também há canalhice e sordidez. És canalha e sórdida, minha cara. Tens beleza e encantamento, brilho nos olhos que escondem, ou melhor, apenas ofuscam que está mais nua do que todos os outros. A nudez que fere quem te expôs a falta de vestimentas não somente com lascívia, mas teria oferecido a ti sua capa ou mesmo a vida para cobri-la nos momentos em que necessitasse.
A nudez que apagaste da sua lembrança e preferes expor como inexistente. Mas há a nudez, mesmo que feches os olhos e não se permita vê-la. Estás tão nua quanto todos os outros, que já não se assoberbam com o que tem diante dos seus olhos nos momentos mais improváveis do dia.
Nu já era antes de ti, e nu continuarei, provavelmente ainda mais despido, se é que isso pode ser possível. Há sol agora, e continuará havendo sol enquanto houver inocência e estupefação diante dos homens e todas as suas coisas. Estou nu principalmente por causa da minha ingenuidade. Cheguei a rasgar o restante dos trapos que usava para me despir diante de ti. Mas nem assim percebeste que havia ali mais que um encantamento, havia amor.
Sim, nu continuo e imediatamente nu me prostro diante de quem quiser visualizar a minha nudez. Não é vergonhoso ser visto nu pelos outros. Mesmo que eu não aceite a condição, eu ainda continuo nu por sua causa. Mesmo que a razão me diga para costurar as minhas vestes, nu continuo. Por você, sempre nu.

domingo, novembro 11, 2007

Sob efeito de narcóticos


Ao vê-la de longe, comecei a sorrir nevosamente, baixei os olhos e comecei a estralar meus dedos antes de os colocar em forma de concha entre as pernas. Somente eu enxergava essa claridade que me ofuscou a vista assim que se aproximou, e que provinha dessa mulher. Juntava-se à luminosidade que nascia dentro de mim e essa mescla de luzes me fazia cantar mentalmente uma música que me enchia de uma calma avassaladora, como seuma caixa de soníferos me fosse empurrada garganta abaixo. Havia me prometido ser enxuto com as palavras e as medir rigorosamente antes de proferi-las, sob pena de tê-la mais uma vez afastada dos meus olhos. Poderia me portar grosseiramente, se as situações assim apresentadas pedissem tal providência.

O lugar estava vazio, e só me dei conta de que ela havia sentado ao meu lado quando a garçonete colocou sobre as minhas mãos estendidas o cardápio. Não me recordo do que havia pedido para consumir, só me surgem vagas lembranças de que era alguma bebida quente com chocolate de gosto levemente amargo. Não comi nada por receio de me allimentar na sua frente, por medo de me sujar e provocar nela ainda uma pior impressão, como se deixando se saciar a minha fome provocasse nela uma espécie de transgressão de valores a meu respeito.

- Oi, o que você gostaria de falar comigo?

- Nada em especial, apenas senti sua falta. Gostaria de saber de você, como está seu trabalho, seus amigos, livros, discos e tudo o mais. Se não estiver pedindo muito, é claro, não quero ser invasivo, sei que você não gosta de se expor e tenho muito medo de perguntar algo que lhe ofenda. Já percebi que não permites que saibam de você mais do que julga necessário. Mas, olha, eu não te pedi para vir me encontrar porque queira saber da sua intimidade, me perdoe se pensar assim, não foi a minha intenção.

Percebi que havia falado muito além da conta e que as minhas pernas tremiam imensamente, procurava esconder isso dela e tinha a meu favor o fato de que meu tronco mantinha-se razoavelmente estabilizado, por mais que demonstrasse meu nervosismo ao segurar a xícara.

Havia ensaiado o que diria a ela desde que havíamos marcado tal encontro, mas na hora do desenrolar dos fatos geralmente profiro sentenças que nada correspondem ao que havia planejado anteriormente, sendo assim começo a gaguejar e me arrependo de ter sido tão impetuoso.

Mas era tarde, as letras haviam sido golfadas naquela mesa e qualquer deslize meu poderia custar um valor altíssimo para a minha atual condição emocional.

Felizmente sua paciência ainda não havia se esgotado e ela continuava a conversar normalmente comigo. Aliás, de forma convencional demais. Tinha desejo de sacudi-la e dizer: "Pare com esse teatrinho de fingir que nada está acontecendo e que você não percebeu! Tu sabes que me tens nas mãos e que pode me aniquilar com um leve toque entre seus dedos. Não vês quanto sofro por sua causa?". Mas se assim agisse ela simplesmente balançaria a cabeça, mudaria de assunto e internamente me odiaria ainda mais. A mim restaria acender mais um cigarro e lutar insistemente para que a fumaça não encubra ainda mais a minha visão em relação a ela.

E me dizia amigavelmente tudo o que supostamente havia perguntado. Mas na verdade vos digo que não estava muito entretido com as notícias e pormenores da sua vida, apenas buscava observar sua imagem, gestos e palavras, tentando reter o máximo possível na minha memória, para que aquele momento único não se perdesse nos dias seguintes em que sua presença haveria de ser apenas uma saudade alucinante que invadiria meus sentidos e se transformaria em dor física. Pensava da seguinte maneira: "Agora já não tem mais volta, darling, já estás dentro de mim, invadiste sem querer todos os meus recantos profundos e neles fizeste uma maravilhosa anarquia de sentimentos e sensações. Mesmo que eu tenha plena consciência de que para você nada significo, já moras aqui dentro, no grito contido e no silêncio abafado, nas madrugadas insones e nas tardes calorentas, nos momentos de lucidez e nas devaneios desvairados. E isso vai se perpetuar, mesmo que em episódios fragmentados, enquanto resistirmos nessa vidinha medíocre que nós dois temos. Me fizeste descobrir a paixão e o seu desespero, mesmo que tenha sido tão vítima quanto eu nesse emaranhado de vibrações."

E os minutos iam passando, ambos monossilábicos em alguns momentos, enquanto nos restantes havia muita coisa a ser compartilhada. Sentia-me imensamente contente por ser confidente destes detalhes dela que possivelmente poucos sabiam. E ainda um leve torpor invadia-nos, os dois muito polidos e sensatos.

Até que chega o momento da despedida: "Bom, tenho que ir, me desculpe, foi muito bom te rever, espero que fiques bem e te cuides". Agradeço de forma cortês, e me permito um ato de euforia sem o consumo de psicotrópicos. Agarro sua mão direita entre meus dedos, toco-o levemente e com meus dedos indicador e polegar acaricio suavemente sua palma, e digo, levantando meus olhos e sorrindo infantilmente: "Gosto tanto de ti...Sabes disso, não?"


terça-feira, novembro 06, 2007

Tapa com luva de pelica


Só fui me aperceber do acontecido mais ou menos uma hora após o fato consumado, como se estivesse numa espécie de anestesia que parou de fazer efeito neste prazo. Era como se a minha face ardesse em decorrência de um tapa bem dado e desferido juntamente com poucas palavras, que adentravam meu interior como um vento que destelhava casas e arrastava automóveis. Foi um belo final de tarde, com as nuvens em coloração que lembrava entre o rosa e o laranja, e abaixo a vegetação muito verde e alguns outdoors. No sentido contrário da estrada, muitos e muitos automóveis provocavam um pequeno congestionamento. E, ao meu redor, algumas pessoas que dividiam comigo aquele ônibus, cada qual com suas vidas para se preocupar e acontecimentos pitorescos de feriado para contar aos amigos e recordar com doces lembranças.

O ar condicionado gelava os pêlos do meu braço, e foi quando fechei a pequena abertura que fornece ar individual foi que tomei conta de que há alguns momentos havia experimentado mais uma vez a morte, como, aliás, já vivenciei em alguns momentos, alguns dos quais nem me dei conta, apesar do tempo decorrido. Nada de muito dramático nem que provoque estupefação nos presentes. Eu não desci ao solo nem foi necessário que chamassem uma junta médica para a minha pessoa. Em muitos momentos não consigo exprimir com palavras o que acontece, eu apenas sinto. O que sinto é maior do que aquilo que escrevo, como se houvesse algo velado que não pudesse ser revelado nem a eu ou simplesmente não consigo encaixar letras, que formam palavras, e consequentemente frases. Mas mesmo assim me proponho a tentar verbalizar a emoção, por mais que ela me faça de bobo e se esconda atrás do não-dito.

Mas sim, houve a morte de alguma forma na minha vida, a partir do momento em que me vi obrigado a modificar sentimentos por força das circunstâncias. Uma mudança imposta, onde não vi saída a não ser a transformação de algo em simplesmente nada, inexistência, negação, um grande baque. Uma imposição, não uma escolha. Eu me vi obrigado a modificar sem que me fosse perguntado se isso é bom ou ruim. Não pude escolher qual dos dois lados da moeda me era mais conveniente. Apenas escorreu sangue, suor e lágrimas. E estava morto. Ou mesmo amputado.

Mas é necessário sobreviver, mesmo na queda. A partir daquele momento percebi que precisava vivenciar aquela situação, pois sem ela continuaria sendo egoísta e não teria aberto os olhos a muitas coisas que ainda posso presenciar, esperando ser mais bem-sucedido nas próximas oportunidades. Não me cabe culpar nem a eu nem aos outros pelos fatos que acontecem sem a nossa permissão. Não somos consultados, apenas empurrados para o abismo ou mesmo o limbo. E ali permanecemos, vivendo nossa vida medíocre à espera de alguma novidade. De qualquer forma, sempre restam coisas boas, mesmo na dor. Naquele momento eu percebi que precisava morrer para poder continuar, por mais estranho que isso pareça. Me sinto oco, vazio, sem capacidade de reação, pois não me sobraram muitas convicções. Mas me sinto sujo, tentado a me esfregar com uma boa esponja tentando arrancar as nódoas que me fazem imundo. A sujeira que provoca ojeriza e repulsa. Essa imundície que foi o estopim da minha morte.