sábado, novembro 06, 2010

De nada sei


Recomenda-se, de acordo com as Escrituras Sagradas, que a mulher que frequenta as praias desse nosso Brasil varonil use da mais singela discrição em seu trajar. Que não chame a atenção, pois é lícito que seu corpo, templo da mais absoluta honra e glória divinas, seja apreciado apenas pelo seu cônjuge, ainda assim com moderação e dentro dos limites da decência.

Sendo assim, a burqa rosa seria a indumentária mais apropriada para tal fim. Dessa maneira, a mulher estaria ao mesmo tempo gozando do seu direito a um lazer saudável e pleno, ao mesmo tempo em que estaria a salvo dos olhares gulosos dos surfistas locais. Pois o rosa é uma cor deveras feminina, ressaltando assim a florescência humana daquela que a traja, de igual forma denotando o respeito da mulher para com seus preceitos religiosos.

- Ohna suriandra namashivievskaia.

Emudeci, pois o moço se expressa de forma clara e concisa. Eu nada compreendi, confesso sob grave surpresa. Me veio à cabeça esse parco esboço ao ouvir em alguma rádio instruções de como uma moça religiosa deve se trajar para ir às praias. Alguns dias antes, coincidentemente, um ajuntamento de mulheres planejava, ou melhor, sussurrava, uma rápida excursão até a praia de Tambaba, na Paraíba. Já tinham quase a receita total exigida para a empreitada e a mais anciã esfregava as mãos ansiosamente à espera de tal momento.

Pois bem.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Olhos baixos


Dessa vez mais escorou-se à parede em busca de algo que ali não havia mais. Ainda existiam marcas recentes de dedos na parede, somente isso. O resto era penumbra, móveis empoeirados e um cheiro latente de café fresco, que provavelmente emanava de algum imóvel próximo. E esse aroma despertou-me uma fome física, resultado de uma fome interior, de um saco sem fundo clamando por ser preenchido. Era uma fome que não se matava com pão ou algo do gênero, mas sim a fome pela ausência, pelo silêncio, oco, vazio e o que mais pudesse exprimir o que sentia-se flutuando pelo ar daquele lugar naquele instante. Era a emanação do que não se tinha mais, se algum dia porventura se viveu. Ou será que foi apenas fruto de uma imaginação sedenta pelo interdito?

O fato a ser constatado era que não havia nada ali além de um corpo transitando por entre uma mesa e cadeiras de madeira, com os olhos semicerrados vasculhando o chão em busca de algum sinal de retorno. Alguma sujeira que deveria ainda ser varrida, um pó necessitando ser aspirado, algum eletrodoméstico esquecido pelos armários, algum prato na pia que necessitava ser lavado, um sabonete aguardando o momento do seu uso, uma torneira que pingava, um teto que desabava, um gato que miava, alguma mão que apertasse a maçaneta. Se ainda houvesse algo a ser concretizado, não seria naquele instante que a faxina seria efetuada.

Sentou-se ao chão, ao mesmo tempo em que amaciava o acolchoado de uma poltrona próxima. Ao fundo, algumas crianças brincavam e lá fora a vida transcorria seu ritmo cotidiano, freneticamente mas ao mesmo tempo insurgindo torpor. E esse ronco no estômago cada vez mais dilacerante, pois ali não havia sopa alguma que fosse a ser sorvida, alimento algum que pudesse sanar a necessidade não somente física do palpável. Ali era o momento do não, do silêncio, da fixação e da dúvida, teimando em não se transformar em certeza: não poderia sê-lo mais famélico do que naquele instante, e o maná que ansiava poderia nunca mais tocar a campainha. Ou, quem sabe por acaso ou piedade das circunstâncias, a casa pudesse novamente ser arrumada?


segunda-feira, agosto 30, 2010

O Inominável


Acho que meramente dispensável de apresentações verbais. O salão já estava escuro e as pessoas acomodadas quando ali cheguei. Sentei-me de maneira confortável e pus-me a observar as feições dos vizinhos de cadeira, daqueles que provavelmente dividiriam comigo a emoção da música, de intensidade diferentes, mas de alguma forma especial e diferente: éramos vários que se transformariam em algum exato instante futuro em um só, sentindo nos poros o som da música que adentraria nossas mentes e corações. Sem mais delongas, as cortinas se levantaram e a orquestra começou a tocar aqueles sons que revelaria o dom de emocionar e evocar sentimentos e sensações nostálgicas mesmo nas mais jurássicas e débeis criaturas. E dentre elas lá estava eu, mesmo cansado após um longo dia de obrigações cotidianas.
Abstraí-me, segurei em sua mão, respirei longamento e fundo e me entreguei ao novo. Ao obscuro deliciosamente incrível que me fazia concatenar os sons e formar imagens de infância, quando corria na areia da praia e formava castelos com pá e balde.
Assim é o som que emana do mais fundo da nossa alma, ou melhor, a que tem a propriedade de tocar no nosso mais profundo eu, fazendo sorrir os adeptos do azedume e chorar os mais incautos ranhetas. Que me perdoem os adeptos dos hits musicais proclamados nos programas populares dominicais ou mesmo nas micaretas que proliferam o ano inteiro, mas nada como as negras vozes roucas do jazz ou mesmo a batida gostosa de uma boa bossa, ou quem sabe mesmo uma música lírica, apenas instrumental. Alimenta-nos não o corpo, mas a alma. Como necessidade física que temos de ar, água e comida do corpo. Ás vezes é preciso uma massagem na alma.
E nada como uma boa música, um bom papo e umas boas risadas, mesmo que internalizadas. Como no instante em que estava em público: me lembrei de coisas bobas e risíveis que me dizias, e sorri, com as mãos entre as pernas. Como um garoto se lembrando do sumo da manga que escorreu pela roupa ao pé da árvore. Ou assim como mãos que se entrelaçam no escuro da noite e sussuram doidices pelas tardes nubladas.

terça-feira, julho 27, 2010

Uma pequena dica

Gostas de cinema? Tem alguma preferência por diversão engraçada e ao mesmo tempo inteligente e construtora de reflexões e surpresas? Se sim, provavelmente já deve ter assistido ou ao menos ter ouvido comentários sobre O Fabuloso Destino de Amelie Poulain. Se assistiu, repita o ato. Se ainda não, pergunto-lhe o por que de tal ato falho, aliás gravíssimo sob todas as instâncias. Finalmente eu me redimi, o vi e o verei quantas vezes possível e necessário. Se quiser compartilhar comigo tal experiência, favor trazer a pipoca. Não tenho preferência de sabor, apenas a necessidade de compartilhar tal experiência. Sem mais delongas, apaguem as luzes e iniciemos a projeção.



sexta-feira, junho 18, 2010

Em Braile


Ontem você disse que me amava, assim, bobamente e de uma forma tão terna e que sei que para ti extremamente sincera. Confesso-te, a ti, a eu mesmo, a vós, para quem quiser ouvir, ou melhor, ler as palavras que digo com extrema vontade de gritar pelos canteiros centrais da praia: engasguei. Não esperava isso, até porque conheço-te o suficiente para saber que só dirias isso, se um dia o dissesses, se realmente o sentimento viesse do seu mais profundo, dos seus poros, carne e coração. Nem é preciso que eu diga o quanto também te amo e te quero, ao meu lado, na minha frente, em todos os cantos, preenchendo os espaços vazios e ocupando também os que estiverem de alguma forma preenchidos pelo que se convencionou chamar de existência, tudo o que fui, sou e serei. Se bem que é preciso que se diga que, quando te vi pela primeira vez, sabia que alguma coisa aconteceria em minha mente e coração. Sem medo de pieguismos ou lugares-comuns, o coração começou a bater em compasso diferenciado, acompanhando aquele ritmo melódico de quem sabe que nunca mais será o mesmo depois de certas visões e experiências.

E sorrio para estranhos, como quem quisesse compartilhar um pão, um doce ou algum outro alimento escondido em meu bolso, como quem fala com o olhar: sejamos felizes com os presentes que nos são dados abruptamente, naqueles momentos inesperados, como quem olha para as nuvens que formam desenhos no céu e procura adivinhar qual imagem formam. E rio freneticamente, ainda mais quando falo contigo ao telefone, procurando que absorvas a energia que emana do meu ser e te faça sentir um arrepio na espinha e uma quentura nas orelhas como quem sussurrasse: ai de mim sem ti hoje aqui ao meu lado, tocando meus dedos frios com suas mãos quentes.

És, em verdade, muito mais do que consiga externalizar com a palavra, pois ainda não fui treinado ou sensibilizado o suficiente para dar nome a certas emoções. Eu apenas sei sentir, falá-las ainda que tremulamente e vacilante. Só sei que também te amo. Que você me ama. Que nos amamos ainda mais quando o oculto que ambos já sabíamos nos foi revelado. Que possamos sentar na mesa e dividir o nosso cálice com todos aqueles que sabem nesse mesmo instante o que vivemos e que todos aqueles que não o sabem ainda venham a experimentar. Tem valido a pena todos os dias, e valerá ainda mais. Fecho os olhos e sinto uma alegria tão grande que meus olhos lacrimejam, agradeço entorpecido e toco suas sobrancelhas. Infantilmente, bobamente, como o cego que ansiosamente procurasse conhecer o mundo pelo tato. Tateio a ti, tu me tateias, e com nossas mãos tateamos o mundo que a partir de agora nos descortina inteiramente novo.

terça-feira, junho 01, 2010

Só para constar

Da mesma forma como você sorri bobamente quando assiste alguma coisa jocosa na televisão, eu esparramo meus braços em cruz em volta da cama enquanto te beijo, te toco e cheiro. Ou como quando suas cachorras se enciumam de mim e se colocam entre nós quando estamos conversando coisas boas e bobas no sofá. Ou quando o tempo fecha e, inesperadamente, você briga comigo pelas coisas mais banais, e eu não consigo deixar de achar engraçada a forma como reages a circunstâncias que a meu ver são desimportantes. Ou então quando falas de sua mãe, de seu temperamento e de suas brigas homéricas com ela. Ou simplesmente da saudade que sinto quando não te tenho nas adjacências dos meus poros, como se já não te visse por longa data. Mas me separei de você há poucas horas, nessas circunstâncias percebo que na cronologia dos bobos que amam o tempo corre de uma forma toda peculiar.
Ou então quando me beijas a testa, desejando que eu fique com Deus; sendo assim, divago, sento e me lembro quando te disses que gostava de Angela Rorô, e me disses, bobamente: Mas eu também. Pois bem, nada de muito importante a ser descrito aqui. Percebi que ando extremamente cru ao verbalizar. Tenho-me mantido mudo observando o silêncio que há nos seus passos e gestuais. És a minha Pasárgada hoje. Que assim seja por tempo indefinido. Que seja. Sim. Com algumas reticências, pois elas representam o que não consegue ser dito, mas apenas externalizado no olhar e nos toques. Como ando folhetinesco, bobo e piegas.

quinta-feira, maio 13, 2010

Do you wanna dance?

Pois bem, o máximo que eu faço é pisar nos pés alheios enquanto, desajeitadamente, tento me adaptar ao ritmo da música, ou mesmo movimentar desajeitadamente os braços e pernas imaginando que crio uma forma de chacoalhar o esqueleto extremamente contemporânea e que futuramente será estudada e aprofundada pelas escolas de dança de arte moderna. Sem subterfúgios. Sem linguagem cifrada nem subentendidos. Sem psicanálise muito menos frases de autoconsolação. Apenas gostei da sonoridade do clipe. O clima francês. Os personagens extremamente blasès e sua vestimenta apropriada. Senti-me no clima. Como se eu pudesse estar naquele cenário em matizes pretas e brancas. Do outro lado das câmeras, batendo o pezinho no chão ao compasso do som, com um sorrisinho no canto da boca e com vergonha de confessar que gostaria de ser um quarto elemento do clipe.


domingo, maio 02, 2010

Para não dizer que não lembrei de ti

Pois é, abandonei esse blog, não tenho tido muita inspiração nem me lembrado da existência dessa ferramenta que já me fez tão bem. Sendo assim, hoje eu quero ouvir e dançar tango, obviamente e preferencialmente tendo você na parceria, nem que seja na penumbra do quarto, com a janela fechada, a porta trancada e as luzes apagadas, sob pena de ridículo e risos de escárnio. E que os transeuntes das ruas de Buenos Aires aplaudissem e se entusiasmassem enquanto eu te dissesse: Te Amo. Mas depois pensei: acorda, moço. Você precisa aprender a ser só.

domingo, abril 11, 2010

Algum consolo

Naquela tarde chuvosa, sua lembrança esfumaçada me veio à pele indolente e dolorosa, como uma agulha picando-me o braço. Já sabia que não existia mais o durante, mas me era necessário a recordação do por enquanto. No preciso momento, seu corpo solto em lugar desconhecido me aderia à cabeça como o sal da água marinha naqueles banhos de mar noturnos e solitários. Mas o fruto da imaginação sobrepunha a realidade, sorri eu, entre melancólico e irônico.
Continuar, mesmo assim. Era o que tinha de ser feito. Sem uma segunda alternativa. Mas naquele dia ainda não havia descoberto a fórmula; ainda hoje não a descobri totalmente. A calçada continuava deserta, esperando meu caminhar por vezes vacilante. Eu tinha de andar por ela, ou mesmo escolher continuar estático por tempo incerto, mas o tempo me impelia a caminhar, terno e consolador. Para todos aqueles que sabem o que é o amor em sua via única, arrisco-me a dizer: mesmo que sua delicadeza não tenha tido capacidade de adentrar a alma alheia, guarde-a no fundo da gaveta, pois ela ainda haverá de ser servida. Mesmo que em prazo médio ou longo. Esta não apodrece nem exala mau cheiro. Permanecerá intacta à espera do momento em que finalmente será oferecida a alguém.
Na falta da sua mão, eu mesmo afago meus cabelos com essa idéia consoladora. Pode até parecer frase feita, mas eu não receio parecer banal. A porta continua destrancada, um dia conhecerei o reverso da moeda.

domingo, fevereiro 28, 2010

Apenas sentindo

Agora não adianta mais, é irreversível, o cheiro já está grudado irremediavelmente em minha pele e roupas, durante o anoitecer e principalmente quando amanhece. Na outra esquina, não sei se te encontrarei mais uma vez, mesmo algo me dizendo que sim, que não pode ser dessa forma torta, que ainda existe um desvio, um outro caminho, uma estrada vicinal que me conduza ao mais fundo de você e que você venha a me tirar desse torpor, dessa apatia letal que me tem feito arrastado e pesado pelas horas que vão se passando sem que eu me aperceba disso. Apenas palavras, vãs e fúteis como quem as escreve. O que palpita é muito mais verdadeiro e essencial. Tem sido o meu leitmotiv nas madrugadas insones.

PS: Lembra quando você me disse que não sabia porque ainda se lembrava com saudades de mim? A resposta é muito simples: és sadomasoquista, gostas dos subterrâneos, e eu sou o simulacro mal acabado daqueles que não foram, não tiveram e nunca serão. Eu sou as suas angústias mais profundas, o que você não conseguiu externalizar, mas que por algum motivo mantêm vivo dentro de ti. Eu fui a realização dos seus piores dramas, somente porque eu sou a imagem daquele não realizado, do distante, do que olhava para ti como se procurasse a salvação que nunca poderias me dar. Sendo assim, aceite: eu fui e seria a sua maldição se continuássemos sendo um só.




sábado, fevereiro 20, 2010

A Ciranda


Encontro-me parado e solitário dentro daquele elevador desativado temporariamente entre dois andares por falta de energia elétrica, em meio à penumbra. As horas passam lentamente sem possibilidades de algum resgate, motivados talvez pela minha inabilidade e apatia em recorrer de algum socorro, nem ao menos me apercebi ainda do telefone de emergência instalado à minha direita. Sento no chão acarpetado e observado a fraca luz que adentra o ambiente, com a sombra do meu rosto na palma das mãos, observando-as desatentamente e sem estardalhaço interno algum. Apenas com a sensação da reminescência, do eterno retorno, do temido, do não esperado que volta sempre, independente da minha vontade e necessidade.

De certa forma acalma-me aquela meia luz, simbologia de que, ao menos por enquanto, existe um resquício de salvação, de ainda não queda total pelo que suponho ser acontecimento futuro. Ainda vivo somente a ansiedade da espera, da inquietação e das mãos úmidas do que não pude evitar, por mais que me atormente sabendo que poderia tê-lo evitado, mas, mais uma vez o círculo se fecha e vejo-me nas mesmas circunstâncias de um passado não tão distante que não me seja mais possível revivê-lo em flashbacks e objetos que o remetam a tal.

Na minha imaginação algumas crianças naquele corredor brincam de ciranda, entoando aqueles cânticos infantis, enquanto eu ao centro observo somente com o olhar suas bocas e corpos tremulantes e arfantes que rodam simetricamente sem que em algum momento a roda se desfaça e cada uma delas se ocupe de outras brincadeiras ou afazeres. Ali estava sendo estabelecido para que eu não pudesse me desvencilhar da prisão que começara a se acercar de mim alguns momentos antes.

Só sei que temo reviver certas situações que procuro evitar com conhecimento de causa, comparando-as ao dia em que, mesmo com o sol causticante, não me precavi e saí à rua sem ao menos uma proteção mínima para os olhos. Como resultado, obviamente, enxergava vultos em meio ao amarelo incansável solar.

E assim tem se iniciado o processo interno do tão temido, do evitável mas infelizmente ainda assim alcançável. Palavras tem sido vãs na sua descrição porque, mais uma vez, o principal de tudo ficará nas entrelinhas e com elas não me seria possível sua descrição, somente um rascunho roto do que tanto me amedronta.

Pois sendo assim, troco em miúdos: espero que esse elevador seja consertado em tempo cômodo, pois não gostaria de novamente provar do fel e dos gritos de paixões desenfreadas e mal ajambradas.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Só dez por cento é mentira

Só digo que sem Manoel de Barros eu me seria ainda mais desprezível, não teria reinvenção muito menos salvação. Por Manoel e em Manoel me calo, me divirto, me delicio com suas palavras e me surpreendo com suas palavras e despalavras. E, principalmente, me amplio, para todo o sempre, Amém.
Se tiverem a oportunidade, assistam Só dez por cento é mentira, uma espécie de videodocumentário consentida por Manoel sobre sua vida e obra, e se arrepiem como eu. Mas, se ele não te tocar, esqueça. Você não foi talhado para a reinvenção da gramática manuelesca, ou manuelina, sei lá eu.


domingo, fevereiro 07, 2010

Mimimimimi


Como sabiamente escrivinhou o santo autor: Uma questão de honestidade básica. Sem falsos escapismos ou sabedoria de livros de auto-ajuda, muito menos algumas frases feitas tão úteis como o guardanapo sujo de catchup após o final do sanduíche. É preciso saber se ser se não há o que fazer. Como o agricultor sem defensivos para erradicar a praga em sua plantação, estão alguns de nós diante de determinadas situações. Se não se pode ser, que se chafurde na desgraça sem falsos pieguismos tolos nem frases de autoconsolação. Mas com honestidade, reitero. Pague-se o preço devido, por mais que este seja alto. Se, realmente, existem novas janelas na rua de trás a serem arrombadas, meta-se as caras, se possível for. Não tome a aceitação como covardia ou fraqueza. Ou tome-as, como melhor lhe convier. Só quem vive em sua carne e corpo sabe das suas dores e delícias, principalmente das suas dores, mesmo que sejam as mais comesinhas e egoístas. A mim não importa como nem onde, mas que dói, irremediavelmente. Me interessam aqueles cujos corpos estão desalojados em seus tempos e espaços, os que vagueiam sem rumo certo, os que bocejam com o hoje e desdenham do próximo amanhecer, por estes falam a minha língua. Com estes posso urrar no meio da praça sem ser taxado de pinel. E, se taxado for, estarei em minha alcatéia. A voz daqueles que não são se torna tão áspera que, com o passar das horas, transforma-se naquele audível que preferimos não perceber quando "tudo" parece mais suportável, ou menos enfadonho.

Aquelas que não perdem a finesse nem sob as lágrimas ao Romeu abandonado e que se fecham em copas ao transcorrer da vida são o tipo de pessoas que me entenderiam, pois falam às claras e tem no olhar trevas e luz.

O que digo é: saiba ser, mas também saiba experimentar a sensação do não. Tal como tem sido a negação, ou melhor, a aceitação empírica de que há algo que não se altera, por mais que atos e pensamentos estejam em consonância contrária. Eu não pude, fracassei, caí, cada vez mais me acomodando à rede por tanto tempo rejeitada. A frustração também pode ser bela e poética depois que se vivencia outros estágios. Não é o ideal, eu sei, aliás, todos sabem, mas foi o que deu. Sem tantos dramalhões existencialistas. Ao som de Bossa Nova e tendo ao meu lado aqueles tantos ordinários perdidos pelas praças, eu brindo a todas as alegrias e terrores que conheci em vida. Sem falsas esperanças, vivendo e sendo o que me foi permitido. Me amoldando a novos corpos e almas.

domingo, janeiro 24, 2010

Adágio ao pé na bunda


Mata minha fome de ti, sirva-me os manjares de sabores mais apurados que provém dos seus poros, cheiros e carnes. Traga-me de novo a soberba daquele que deseja o prato em porções fartas. Faça-me preguiçoso ao fazer com que o tempo corra menos em sua presença. E que eu demore alguns minutos para te responder, para que eu saboreie o tom aveludado e rouco da sua voz. Que eu seja lento ao te apontar as pequenas banalidades nossas de cada dia, antevendo sua reação e sempre sorrindo com suas conclusões inesperadas. Que a música de fundo do bar torne-se ainda mais deliciosa e que nossas piores desavenças sejam lavadas ao som de Chet Baker e luzes acesas pela casa. Embeba-me com seus acessos de ciúme e que o calor da sua mão em meu rosto seja apenas o prenúncio de uma tarde saudosa, quando você se vai mas a presença torna-se ainda mais forte. Deixe no forno aquela sua receita de família há anos esquecida, para que eu reclame do tempero em tom de troça e te faça chegar à ira, sendo que depois eu deitarei minha mão sobre a tua e direi o quanto necessito de você.

Você, sempre você, que um belo dia saiu daqui mas não de mim. Não conseguiste tirar da memória os pequenos gestos, as coisas boas e bobas, daquelas que me perguntam onde andará você. Digo, balançando a cabeça, que estás no meu sangue, e mesmo que não o queira ainda permanece, continua. Tal e qual o buraco na parede mesmo após a retirada do prego. Sedento percorro os lugares de antes, sedento da mão que já não me acompanha mais, dos dedos longos e finos que coçavam minha nuca durante o sono. Do vinho compartilhado aos goles, da ressaca programada, do sono adiado, dos dedos vorazes, das línguas aceleradas, das velas agora apagadas. Dos seus humores inconstantes e das músicas cantaroladas no banheiro. Que saudades de você, que falta você me faz, o que foi que você me fez?

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Resmungando vivo

Quando as olheiras tornam-se incômodas, a voz embarga e sai rouquenha, a cachaça se torna tão companheira quanto a água nossa de cada dia e sente-se com a impressão de estranheza perante o mundo e suas coisas, eu ouço alguma coisa que me deixe ainda mais pernóstico. Sendo assim, nada melhor que Maysa. Porque eu só quero ir além do que suponho o limite, eu quero o improvável. Vaiem-me, eu mereço ser apedrejado na ágora.


sábado, janeiro 09, 2010

Em algum poço


Com prazo de validade vencido: assim se sentia. Com uma sensação de não-pertencimento a nada nem a ninguém. Não uma total desapropriação, mas o que mais lhe importava naquele instante havia se esfumaçado feito o número de mágica do mágico no circo mambembe. Uma mão contendo uma pomba e Zás!Trás!, a dita cuja desaparece sem deixar vestígios, nem ao menos um rastro de poeira no solo. Inconsequente e inconsciente tartamudeamos nós após o fim do que julgávamos muito mais vivo do que supunha a vã inocência ou imaturidade diante do déjà vu.

Mágica feita, platéia satisfeita e boquiaberta, resta a nostalgia do presente intocado, sem arroubos, inexistente: assim dito arrastadamente e letra por letra, como se a audição do tal verbete por si só provocasse mais angústia. E esperanças, obviamente, pois a não existência deste cavaria poço de tal profundidade que dele só se sai em casos excepcionais e análogos.

Pois só vivo intensamente o momento vivido após seu completo término, como se a lembrança fosse mais envolvente e aniquiladora do que o realmente experenciado. Pegadas na areia só me comovem após o instante em que a onda vem e os apaga. Ainda gosto mais dos resquícios, do que fartamente sobeja, da cicatriz, principalmente as da alma. Neles posso suscitar a reinvenção, as opções, alternativas e novos finalmentes.


Imaginar como teria sido se eu tivesse dito, oferecido, ouvido, tocado e fornecido em sangue, ossos, poros e lágrimas, que me dão a sensação de tempo molemente transcorrido, de relógios quase parados, do grito não pronunciado, da piscadela não concretizada.


E assim é, mais uma vez a mão vazia e essa fome às vezes insuportável, que alimento algum saciará e que será eliminada apenas com um olhar doce, uma mão quente e um cheiro bom que não existe mais aqui onde estou. E nem aonde mais eu procurar, pois já se tornou memória, a sarça já se consumiu. Me escoro nas paredes úmidas do lugar onde eu me encontro, estando eu também tão umedecido quanto tais paredes, procurando com os olhos o interruptor da luz, me esquecendo que as lâmpadas foram extraviadas ou estão apenas quebradas. Sendo assim, não há luminosidade prevista.

Apenas a saudade daquela respiração tantas vezes procurada e possivelmente jamais encontrada. Logo mais encontrarei cheiros e olhares novos, pelos quais sei que hei de procurar equivalentes nas manhãs que se arrastarão. E o ciclo mais uma vez se inicia, mais uma vez total e ensandecido, até uma nova parede sem iluminação. É necessário aprender a não ter, a não ser. De uma vez por todas.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Pensamentos esparsos


Estive pensando em todas as coisas que eu poderia ter dito, olhado, sentido, sido e esperado se houvesse tido tempo para tal, mas a quebra se deu imatura, antes da percepção ao menos do que já havia se iniciado. E, principalmente, anterior ao primeiro suspiro.

Como uma casa mobiliada antes da finalização de sua construção. Assim foi. Casa abandonada, com a poeira tomando conta e resquícios da última chuva com móveis embolorados. Azulejos quebrados e grama alta em volta da construção. Não houve tempo para o fechamento do ciclo: nascimento, crescimento e morte. Nascimento e morte confundiram-se de tal forma que se tornou difícil precisar onde é o fechamento de um e iniciação da sua consequência. Mas ficou a nostalgia do não-experenciado nas paredes da casa, que ainda guardam marcas quase imperceptíveis da sua passagem. Leve cheiro acre no teto inexistente desse quarto. E alguns olhares e muitas perguntas de como teria sido essa casa com aquela presença mais prolongada.

Se você ainda cá estivesse, já teria tirado seus óculos escuros para melhor observação da disposição da mobília modificada no dia anterior. Olharia o capacho da porta com a sensação de que suas pisadas teriam sido assimétricas e barulhentas. E todos os outros objetos seriam meros detalhes crivados de histórias e sensações. Alguns copos vazios e cinzeiros lotados pela varanda denotariam que uma tarde qualquer havia sido entremeada por amigos em comum, muitas risadas e conversas desconexas.

Mas você se foi sem ao menos deixar um bilhete grudado com imã na porta da geladeira já enferrujada: Gás-Requeijão-Cenoura-Alface-Acabou, não volto mais - PS: Tire as roupas do varal.