Enquanto passava a mão pelo cabelo recém-cortado, os pêlos do meu braço se arrepiavam, sentia o gosto salgado das lágrimas que cismavam em se desfazer na minha boca. Ao mesmo tempo, sentia como que seu olhar enigmático, confortante e desafiador. Foi uma experiência mediúnica. Sentia Clarice Lispector a meu redor, durante a apresentação teatral em que eram encenados dois contos de sua autoria.
No palco, três atrizes a representavam: Clarice jovem, com um livro que a absorvia e a mantinha entretida; uma outra Clarice, já madura, escrevendo alguma coisa em sua máquina de escrever e, finalmente, uma terceira Clarice, tão madura cronologicamente quanto a segunda, de turbante, cigarro na mão e pose altiva, que circulava pelo espaço proferindo seus pensamentos como que chicoteando o espectador. Algumas pessoas até riam de sua impetuosidade, mas para mim aquilo era um choque interno. Era eu vivendo nas suas palavras, ou a minha experiência de vida metamorfoseada no que ali era dito.
Minha paixão por ela é notória e não me esquivo de dizer que nunca me senti tão estapeado e retratado como quando tive meu primeiro contato com sua literatura. Infelizmente ela nos deixou há 30 anos, mas seu espólio permanece intocado em todo aquele que a sente. De forma visceral e crua, como um espelho que se quebra, jogando os cacos no nosso eu mais íntimo e indevassável. Despedaçando não o visível aos olhos, mas o que se sente no profundo, nos desnuda e provoca estupefação com as dúvidas que surgem abruptamente e cujas respostas não parecem ter solução.
Palavras me faltam para descrever nossa relação. Surge um vazio, um olhar, um toque e suas palavras, que rasgam internamente e provocam o nascimento de novos seres adormecidos dentro de mim. Simplesmente a sinto e a compreendo na sua busca de se solucionar como ser humano, vivendo uma espécie de vida dupla: aparentemente, uma senhora de ascendência ucraniana autora de grandes sucessos, mas dentro dela havia a necessidade de se expressar. Mas comunicar o que? Tampouco ela sabia. Mas suas tentativas foram imensamente válidas. E continuo sendo tocado sempre que a descubro.
Ah, bem lembrado. Na quarta-feira passada pensei muito em ti. Quando vi meu rosto refletido pelas lentes dos óculos escuros da Vivi (gostei muito de reencontrar você e o Guilherme, te desejo tudo de bom), me pus a ajeitar o cabelo, recordando de quando saí do banheiro com os cabelos molhados e despenteados. Você sorriu e tentava arrumá-los, dizendo: "Assim não, está muito pueril". Me deu um nó na garganta e tive a certeza de que algo mudou em mim, não sei se para melhor ou para pior. Não restou muita coisa, me sinto mais oco e duro, sem saber como continuar. Mas há de se insistir, mesmo sem fé alguma.