terça-feira, outubro 30, 2007

O pequeno bicudo


Gozado, esfriou de repente. Há horas atrás o sol estava tão forte que incomodava nossos olhos e nos fazia cerrar a vista, passarinho. Passarinho, você é a única coisa que me restou de tudo isso, de todos os sonhos, de todas as vezes em que pensei alto, de todas as vezes em que sorri, de todos os momentos em que chorei, de todas as noites que adentraram o meu ser e me permitiram ser mais lúcido e triste com as notícias que você me trazia, escritas naqueles papeizinhos que vinham em seu bico. Entoavas canções fúnebres e algumas de puro contentamento quando assim achavas lícito.

Olha, passarinho, está na hora de você voar, sabia? Vai procurar seus amigos bicudos, beber das águas puras dos rios que existem por aí, vai encontrares uma passarinha muito jeitosa e com ela terás lindos passarinhozinhos que entoarão seu canto de perpetuação, que alegrará os ouvidos de velhos e jovens, crianças e adolescentes, homens e mulheres, e mesmo entrar na alma de todos os seres viventes desse mundão de meu Deus.

Trazes boas novas a todos os homens, e mesmo a eu, que sou participante de todas as auroras e crepúsculos dessa praia. Veja bem, passarinho. Já te prendi tempo demais aqui na minha presença. Vês quantas pessoas estão sentadas nas suas cadeiras de praia, ou caminhando pela areia? Vai lá, passarinho.

Olha só, você está vendo aquele menino de cabelo preto, meio gordinho, com uma pá e um balde nas mãos? Ele está chorando, estou observando que ele fez um castelinho de areia muito bonito que a onda levou. Pousa no ombro dessa criança, ensina-o a construir os mais lindos castelos e esculturas, afaga os cabelos dele com seu bico, entoe para ele suas canções mais belas e puras, entra na vida dele e não o abandone mais. Fica com ele desde já. Olha só: esse menino está parando de chorar, está correndo ao encontro de sua mãe,e ele tem jeito de quem gosta muito de bichos. Eu acho que ele tem um labrados preto muito brincalhão que o recebe com muitas lambidas quando ele chega da escola, todo sujo e com fome. Tenho certeza de que ele fará uma gaiola muito bonita para você, e te dará de comer um alpiste bem gostoso, que te fará cantar, cantar e cantar com mais força e ímpeto.

Presta atenção: rodeia esse menino como quem não quer nada, eriça suas penas, faz uma pose bem bonita para ele gostar de você, passarinho. E entra naquele coraçãozinho puro e ingênuo de criança. Ajuda esse garoto com os deveres da escola, e quando ele estiver jogando videogame, você fica ao lado dele prestando atenção em todos os macetes do jogo, e o tempo vai passar, passarinho, vocês dois muito amigos e importantes na vida um do outro.

Esse garoto vai crescer, virar adolescente. Esteja ao lado dele no dia em que ele se apaixonar pela primeira vez, quando ele der seu primeiro beijo, quando tiver a sua primeira transa, quando ele passar no vestibular, quando ele aprender a dirigir, quando ele conseguir seu primeiro trabalho, quando ele estiver com sua primeira namorada, até que esse menino se transforme em homem e a vida por si só os levar para caminhos opostos, onde cada um já não caiba mais na vida um do outro.

Tente viver esses instantes, faça esse esforço, porque você já não é mais meu. Te deixo livre, voa muito alto agora, vá descobrir novas árvores, novas nuvens, novos alimentos, novas espécies de passarinhos que você nunca viu e provavelmente vai estranhar. Estou te pedindo para ficar ao lado daquele menino porque aquela criança sou eu, há alguns anos atrás. Uma criança que não sabia o que é viver, que se satisfazia em montar seu ferrorama na sala de casa e incomodar sua mãe pela bagunça. Uma criança que se fartava de balas na hora do recreio e escondia seu monte de chocolates na bolsa da mochila. O menino hoje já não existe dentro de eu, ele morreu quando descobriu que viver pode não ser a melhor forma de simplesmente existir. Esse homem em que me transformei só tem dentro de si uma coisa oca, dura e sem forma. Esse homem descobriu a vileza do amor que provoca repulsa e distância. Mas vai lá, passarinho, vai pousar em novas beiragens. Eu te deixo ir, mas não te permito voltar mais. Agora você está livre pelo mundo. Assim como eu era quando fui essa criança.

Um comentário:

O Sanatório Geral disse...

Xar�... Fazia tempo que eu n�o passava por aqui. O tempo tava meio corrido e quando eu vou para o pc, � s� pra trabalhar. Hoje decidi jogar tudo pro alto e dar uma passada no seu blog.

Como vai a vida? espero que a gente se encontre no msn.

Abra�o,
Edcarlos