quarta-feira, abril 29, 2009

Alguma música


Antes mesmo que eu desse conta do que havia ao meu redor, mesmo acima ou abaixo, a música já existia e tocava, lentamente ou de forma rápida, sem que eu pudesse perceber de onde ela provinha. Não havia festa alguma nas casas da vizinhança muito menos um bar temático ou casa noturna. Mas havia a minha imaginação, meu inconsciente. E era do meu eu profundo que tocava algo, dependendo das circunstâncias. Mesmo que eu quisesse somente o silêncio, a música tocava por iniciativas próprias. E era justamente nos momentos mais silenciosos que o som reverberava no meu eu de dentro para o meu eu de fora. Negras vozes roucas de alguns cigarros, algum álcool e muita solidão abafadas por sons de saxofone e cantando o viver e sofrer. Um palco quase vazio, contendo apenas um vulto, um violão ao colo e à sua frente um microfone. O vulto cantava de olhos fechados, como se não quisesse deixar escapar alguma coisa que sua voz não exprimia, mas somente o seu olhar. Bem diz-se que olhares dizem muito mais do que as palavra, às vezes lançada em precipício. Música dançante, com um grupo considerável de pessoas iluminadas por luzes coloridas e abafadas sacudindo seus corpos e à sua frente guitarras, baterias e alguns outros instrumentos, obviamente manuseados por outros vultos escuros. Uma mulher gorda em um espaço pequeno recitando suas desditas e clamando a outrora do Trás os Montes, em meio aos parreirais e com alguma angústia no ser e proceder. Quando tudo parecia mais claro e límpido. Em um tempo que não volta mais, quando ela achava que não haveria separações e dores futuras. Em uma época em que não se sabia que cada amanhecer trazia juntamente alguns novos desafios. E, finalmente, um local parecido com um cabaré ou cassino, onde, no palco, uma orquestra tocando sons instrumentais entremeados por um homem entoando sons que não saberia identificar a qual ritmo pertence.

Pois bem: quem nunca percebeu a mesma música tocando no inconsciente por diversas vezes que atire a primeira pedra. Ou mesmo músicas, músicas e mais músicas em uma eterna sinfonia mental. A música faz parte da natureza e condição humanas há tempos infindos, cumprindo seu respectivo papel e se transformando tanto em forma de redenção humana quanto entretenimento vazio, que se esgota quando as luzes se apagam e o intérprete sai de cena. Ouvimos música na rua, no trabalho, nos centros comerciais, nos hipermercados, nas boates, nos prédios residenciais, nas estradas, nos postos de gasolina e, principalmente, eu ouço música de madrugada, quando acendo meu cigarro no quintal de casa e sento. Quando fecho os olhos, tenho à minha frente uma espécie de juke box ambulante. Algumas vezes tenho vontade de sair dançando pelo azulejo, sufocando por uma espécie de necessidade de me ser, a cada novo dia. Ser novo. Ser diferente do que fui ontem. Amanhecer para uma nova vida, que não a que tenho. Experimentar novos sabores, novos cheiros, tatear paredes novas, pisar em novos gramados, ou seja, ser pleno de alguma forma. Sem filosofia barata, nem grandes devaneios. Sem pensar, imaginar ou querer ser. Apenas sendo. Algo ou alguém. Ir-me embora pra Pasárgada mais uma vez. Recitar Hilda Hilst enquanto não amanhece. Colocar as mãos no bolso, andar a esmo com um fone de ouvido e me abstrair do barulho ao meu redor. Enfim, elucubrar, ser, pensar e fazer. De forma torta, talvez. Mas na tortuosidade encontrar a redenção.



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