Fabrício, sente aqui que eu preciso chamar-lhe às falas. A questão é a seguinte: sinto-me o mais boçal dos seres viventes quando tenho em mãos algum texto seu. Como se eu nada tivesse vivido e muito menos algo experimentado. Você consegue fugir do lugar-comum quando se fala em amor, tema tão surrado e exaustivamente destrinchado. Como se o ato de amar fosse quase que exclusivamente para a sua pessoa sensação única e exclusiva, com todas as suas dores e delícias. Por sua causa, sinto-me canalha e putrefato, por ter me rogado a viver alheio a terreno tão frutífero e minado.
Com Fabrício me vi cego, surdo, mudo e leproso. Eu não sei ver, não sei sentir, não sei tocar, falar muito menos existir. Sem passado, presente e futuro. Olho para suas palavras e me vejo olhando para o infinito, como se vivesse em uma redoma de vidro e não tivesse me obrigado a existir desde sempre.
Você me dói, Fabrício Carpinejar, como cacos de vidro cortando fundo minha carne. Como forma de protesto, aqui vai um texto que sou eu, indissoluvelmente. Irremediavelmente esse texto é o meu espelho.
E mais uma ameaça: se eu vivesse no Rio Grande do Sul, eu moraria provisoriamente na sua casa. Levaria um colchão, caderno e algumas canetas. E só sairia de lá com um certificado com sua assinatura registrado em cartório e com algumas testemunhas corroborando que lá estive. Pois não se pode mais ser o mesmo depois de Fabrício Carpinejar.
Não ser amado
Passa-se da idade de casar, como se houvesse idade para isso. Passa-se da idade de ter filhos.Suporta-se o desespero de guardar um cheque em branco assinado com o temor de nunca descontá-lo.
Quem colocou limite em nosso tempo?
Regulamos a nossa vida em comparação com as outras, desde a infância até a maturidade, desde o jardim até o asilo. Semelhante a dirigir com o velocímetro quebrado e comparar o que se anda pelos demais carros.
O ritmo não pode ser imposto por fora.Convence-se de que não se é amado.
Não ser amado é pior do que ser invisível. É narrar o que faltou acontecer. Fica-se grávida da vida que não se teve. O peso de um corpo que sequer existiu para continuá-lo em pensamento.
Não ser amado é pior do que ser invisível. Pois nascer não é o bastante para ninguém.
Não ser amado é o mesmo que carecer de pálpebras.É o mesmo que sofrer uma insônia parcial, somente nos ouvidos. É chamar atenção para as virtudes quando os defeitos não param de falar.
Não ser amado é pior do que ser invisível. As portas do guarda-roupa são as venezianas que espreguiçam a casa, e nada é suficientemente justo para dar folga à alegria.
Não ser amado é não encontrar cintura para as palavras. É um castigo mais severo do que o ódio. É mais grave do que esquecer.
Não ser amado é perder a possibilidade de contestar o próprio destino. É morrer de uma saúde incurável. É participar do mundo como se ele estivesse sempre por ser criado. É colar o fogo porque não há carta para ser queimada.
Não ser amado é se diminuir para dormir, se aquietar no almoço familiar, não mudar a assinatura de adolescente. É pular os fatos por não fazer parte deles. É sentar em uma escada para não cair em falso. É não levar uma foto 3x4 na carteira.É correr o domingo para chegar na segunda.
Não ser amado é um crime que não se teve culpa, um castigo que errou de irmão. É voltar aonde não se esteve.
Não ser amado é concluir que o final poderia ser diferente se tivesse havido um começo.É escolher tudo na vida para contar com receio de faltar história. É a velhice avançar sem trazer vergonha; é a velhice avançar com a indiferença ao colo. É voar como um pássaro e ser chamado de morcego. É gastar o parapeito da janela mais do que a porta.
Não ser amado é acreditar que o amor significa apenas receber.